São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Eletrocutando um elefante

ZULMIRA RIBEIRO TAVARES

Este trabalho sobre o período inicial do cinema vai fundo naquilo que propõe, ainda que a intenção seja modesta, de superfície: fazer apenas um esboço desses primeiros anos e trazer ao conhecimento do leitor brasileiro o estágio em que se encontram, hoje, as pesquisas sobre o período realizadas fora do país. Em que consiste esse novo olhar crítico que se volta para um período tão breve, de 1895 a 1910, ou, recuando um pouco, de 1894 a 1906/08?
Em duas atitudes simples e bem concretas: por um lado em "ver para crer", ou seja, dar-se ao luxo o novo crítico de ser tomado pela "síndrome de São Tomé". Amparar-se no maior número existente de registros fílmicos confiáveis, possibilidade ampliada a partir da descoberta de cópias em papel de fotogramas desconhecidos, assim como pelas melhores condições de restauro e exame dos filmes. Por outro lado, em não crer a priori, para poder verdadeiramente ver. Abandonar uma historicidade insulada, pela história em sentido amplo; deixar de lado não a teoria, mas constituir uma nova, paulatinamente formada com todos os dados de contexto existentes, apoiada no amplo campo das atrações visuais e cênicas que antecederam o início do cinema e posteriormente vieram a circundá-lo e/ou impregná-lo.
Portanto, a novidade do enfoque, e não é pouca, reside em procurar enxergar esses primeiros filmes em seu próprio chão histórico, desamarrados da estrutura narrativa clássica em que o cinema de massas se tornou ao longo do tempo; libertá-los principalmente do encadeamento formal interno que teria levado a um padrão estético postiço e cerrado como uma algema: o do "específico fílmico".
O título da obra, "Primeiro Cinema", substitui a designação preconcebida "cinema primitivo" e, assim, sem antecipar juízo de valor, se abre a um campo de estudos muito mais livre e produtivo (permitindo, por exemplo, que nele aflorem certas correspondências entre os filmes iniciais e os movimentos de vanguarda).
O trabalho acha-se amplamente documentado. Pontos de vista distintos vão armando sobre os começos do cinema um painel de exemplos e argumentos com grande poder de convicção, e espero não me enganar ao observar na exposição uma linha central clara, a da autora, tendo como apoio forte as formulações de J. L. Comolli, T. Gunning e L. Santaella.
Comolli, não apenas por estar corretamente citado como o precursor, no início dos anos 70, da consciência da necessidade de uma crítica materialista do cinema que garantisse "a historicidade do seu próprio olhar", mas porque tal formulação constitui uma prática real ao longo do livro e um horizonte crítico sempre retomado.
Gunning, por me parecer o interlocutor mais qualificado da autora, e também o mediador entre esta e o conjunto da nova historiografia. Pois Gunning, apesar de amarrar muito bem sua teoria de um "cinema de atrações", em oposição àquele narrativo, cuida logo de afrouxar o nó dado, negando ruptura entre ambos. A relativização do antagonismo teria algo, a meu ver, de um aconselhamento do tipo: a novidade do primeiro cinema não pode ser extremada em sua apresentação crítica sob risco de se tornar um "outro" absoluto -perdendo-se com isso o próprio movimento histórico que aquela pretende preservar e ter como princípio constitutivo.
E L. Santaella, por manter presente ao longo da escrita, muito além dos breves trechos em que é citada, um vínculo constante entre olhar, tempo e finitude. As imagens roubadas ao tempo pelo olhar mediado pela máquina seriam troféus dúbios, que carregariam consigo mais a consciência da perda do instante que a da sua conquista -e que, segundo Costa, talvez viessem a marcar de forma diferenciada o conjunto de técnicas e processos da história do cinema, hipótese que a autora também pretende desenvolver.
Pouco menos de 90 filmes citados apresentam o primeiro cinema; 21 são anteriores a 1900. A leitura que deles se faz é de franca descoberta. Cada filme exibe algum lado surpreendente que toma parte nesse ou naquele pedacinho de uma história de engenhos e surpresas. Em escala reduzida, e com grande vivacidade, uma vez e outra, e mais outra, ali está, sempre retornando, a passagem do século concentrada em poucos minutos. Atadas pelo fio espantoso da nascente eletricidade, nela máquinas e imagens se inter-relacionam de muitas maneiras. Um cruzamento de graças e sustos, e por que não, também de horror. A respeito da imagem de filme reproduzida no livro, diz sua legenda: "A elefanta Topzy matou três homens. 'Eletrocutando um elefante' (1903) mostra sua real e terrível execução, com um choque de 3.000 volts, diante de uma multidão excitada em Luna Park, Coney Island".
Documento narrado em tempo real, ele se espetaculariza ao exibir os feitos da eletricidade; sua capacidade de programar e produzir morte, sua capacidade de duplicar o processo da morte na película; e principalmente, penso eu, sua capacidade de surpreender e isolar um episódio tornado grotesco pela desconexão brusca entre idéia de justiça e condição humana, exatamente ao ser humanizado um elefante para se poder julgá-lo, sentenciá-lo, executá-lo. (Destituído no episódio o sentido de simples sacrifício do animal, se necessário fosse.)
A pena capital por eletrocussão infligida ao assassino do presidente americano Mckinley, Czolgosz, havia gerado dois anos antes um filme de reconstituição da morte na cadeira elétrica. A justaposição dos dois registros na obra de Costa acentua a estupidez da pena capital, ao sobrepor a imagem da execução de um elefante travestido de gente àquela de um homem a quem se sacrifica como um animal feroz. Mas a impressão forte que "Eletrocutando um Elefante" causa e se desdobra no caso Czolgosz vem a ser apenas um elo da interligação profunda e verdadeira produzida pelo conjunto dos filmes analisados. Sua unidade interior é formada de elementos disparatados, muito diversos entre si, porém capaz de surpreender o real em seu movimento de aparição e atiçar o raciocínio com o inesperado da descoberta. Um ótimo livro.

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