São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Sócrates desfigurado

HECTOR BENOIT

Em resenha intitulada "Figuras de Sócrates" (Jornal de Resenhas, 17/03/97), meu livro "Sócrates - O Nascimento da Razão Negativa" foi desfigurado. Desfigurar é próprio do saber finito do entendimento. Ao contrário, o método dialético não atua como reflexão extrínseca e toma de seu objeto mesmo o determinado. Como se lê na "Ciência da Lógica", de Hegel: "Isto é o que Platão exigia do conhecer, isto é, considerar as coisas em si e por si mesmas; por um lado, considerá-las em sua universalidade, por outro lado, porém, não desviar-se delas, nem recorrer às circunstâncias, exemplos e comparações". Ignora este método o resenhista.
José Veríssimo Teixeira da Mata, o desfigurador, soterra o objeto de análise (o livro a ser comentado para os leitores) com um amontoado de determinações externas. Sobrepõe ao livro determinações (de rancor?) contra mim e escreve: "Conviria alertar o leitor para aspectos do 'Sócrates' de Benoit"; "Benoit escolheu 'matar' Platão"; "instaura verdadeiro tribunal de exceção"; "equivoca-se também"; "subestima ainda", "se vale de expressões pouco convincentes" etc. Sobrepõe ao livro determinações (de antipatia?) a certos filósofos: usando unilateralmente argumentos de Hegel, insinua que teria sido justa a condenação de Sócrates! Platão é classificado entre os "aristocratas escravagistas"! Finalmente, encontra forma de citar Marx, para apenas "demonstrar", logo a seguir, que este filósofo estaria "equivocado"!
Ainda sobrepõe ao livro uma lista mal costurada de autores: nove nomes são citados naquele pequeno espaço! Coerentemente com as suas múltiplas sobreposições, ao referir-se à metodologia do meu livro, irrita-se por não encontrar o seu próprio método infantil e ataca a imanência do "meu" método, irrita-se porque não sobreponho determinações extrínsecas e ataca a "minha" literalidade escrevendo: "Oxalá essa modesta literalidade seja mais que a visão dos sinais gráficos ou sons de sua leitura".
Ora, essa "modesta literalidade" é de fato mais que isso: é a própria "arqué" do método dialético que, ao não sobrepor infantilmente a externalidade sobre o objeto, permite a manifestação da imanente reflexibilidade no movimento contraditório do seu devir. A partir deste método, o livro realiza uma síntese dialética entre a temporalidade dramática e aquela do conceito, superando a superficial discussão historicista: "Sócrates de Platão" e/ou "Sócrates histórico". Nada disto percebeu o resenhista. Mas, ainda que esta modesta literalidade fosse apenas "a visão de sinais gráficos", seria melhor que as sobreposições infantis. Lembro que foi graças à "literalidade" das análises estilométricas que, no século 19, Campbell, Dittenberger, Ritter, Lutoslawski resgataram a autenticidade do "Parmênides" e do "Sofista", de Platão e com isto começaram a irreversível demolição da autoridade de Aristóteles (tão cara ao resenhista) enquanto leitor e intérprete dos "Diálogos".
Posto isto, devolvo duplicado o "oxalá" que recebi. Oxalá o desfigurador adquira um pouco de modesta literalidade! Oxalá apazigue a sua subjetividade (privada) ao ler um texto filosófico! Mas, por falar em coisas privadas, ao terminar a sua resenha, como última crítica às minhas "expressões pouco convincentes", indagava ele, ironicamente, o que poderia significar "regime tradicional de propriedade" na Atenas do século 5º. Ora, desde a ruína da civilização micênica, mas, sobretudo, a partir do século 9º a.C., começou a apropriação privada na Grécia continental. Não seriam suficientes quatro séculos para falarmos da apropriação privada como o regime "tradicional" de propriedade? Salve a ciência da história!

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