São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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DIREITO

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No plano jurídico, a nossa época anuncia duas tendências aparentemente contraditórias: a consolidação da liberdade comportamental, adquirida nas últimas décadas, e uma profunda intolerância em relação aos transgressores da lei.

. Bioética
A notícia da existência de Dolly, a ovelha-clone, gerou um enorme desconforto. De uma forma ou de outra, os países se perguntam se estão protegidos dos cientistas loucos, das aventuras irresponsáveis e dos governos autoritários.
Em 1995, foi editada no Brasil a Lei 8.974, que arrisca controlar o uso da técnica da engenharia genética. Além de definir conceitos e de criar normas de biossegurança, estabelece punição para condutas consideradas perigosas. A pena para a "manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material disponível", por exemplo, é de 6 a 20 anos de reclusão.
Mas a recente conquista da engenharia genética é apenas um passo a mais na direção do conhecimento, como foi o domínio da energia nuclear.
Sempre existiu um conflito entre liberdade científica e sentimentos morais. Por isso, o poder público, quando cria mecanismos de controle, evidentemente necessários, caminha sobre a lâmina afiada de uma navalha: o que é legítima prudência pode ser visto depois como puro obscurantismo.

. Casamento
O que era tido como um sacramento passou a ser mera modalidade de contrato. A primeira decorrência dessa mudança conceitual é a aceitação da idéia do divórcio. Se há um contrato (união livre de vontades), por que não o distrato? O Brasil só admitiu a dissolução do casamento em 1977.
No plano institucional, a família sofreu grandes mudanças no século 20. As mulheres eram praticamente adquiridas pelos homens. Deixaram de ser. O nosso Código Civil (editado em 1916) inscrevia a mulher casada no rol das pessoas "relativamente incapazes".
O fato é que desapareceram as regras que situavam a mulher num plano de submissão e inferioridade. Pouco a pouco, a família ilegítima, resultante da relação informal ou adulterina, saiu da clandestinidade. Filhos legítimos e adulterinos adquiriram igualdade de direitos no momento da herança. A união estável entre homem e mulher foi reconhecida pelos tribunais como uma sociedade de fato, geradora de direitos e obrigações, e, em 1996, a matéria foi regulamentada pelo Congresso.
Algo inimaginável poucos anos atrás, hoje se debate o reconhecimento jurídico das relações gays. A união, a separação, a herança e a adoção de filho por pessoas do mesmo sexo, tudo indica, serão formalmente admitidas e disciplinadas.

. Consumidor
Paralelamente à desmoralização dos tradicionais mecanismos de controle de preço (congelamento, tabelamento etc.), o consumidor brasileiro conquistou a possibilidade de conferir a qualidade dos produtos e serviços anunciados, de se arrepender da aquisição e de acionar a polícia sempre que a empresa fornecedora frustrar sua expectativa. O Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078), editado em 1990, deu eficácia jurídica ao antigo princípio comercial, segundo o qual "o cliente tem sempre razão".

. Crime e castigo
Nos últimos 200 anos houve a humanização do direito penal. A pena era cruel, passou a ser racional. O suplício e a vingança deram lugar à defesa social, se possível com a recuperação do criminoso.
Como as penitenciárias se tornaram inviáveis -obras de engenharia mais caras que os hospitais e, superlotadas, ninguém mais ignora a brutalidade que estimulam-, cresceram os movimentos de despenalização.
Se a prisão ainda é necessária para conter a violência, os governos estabeleceram penas alternativas para delitos de menor impacto: multas, restrições de direito, prestação de serviços e outros constrangimentos eficazes e não tão drásticos.
O valor da presunção de inocência reduziu a incidência da prisão preventiva. Os presos adquiriram direitos (o que não significa que sejam respeitados) e, como regra, a permanência no cárcere passou a depender do comportamento do próprio condenado. A pena de morte quase desapareceu da cultura ocidental.
Este processo liberalizante, no entanto, é conflituoso. Coincide com o crescimento da violência urbana e com a disseminação do sentimento de insegurança.
O crime perdeu o romantismo. A exclusão social explica, mas não justifica a violência. Assim, o regime que permite ao condenado por homicídio trabalhar fora e ser recolhido à cela durante a noite é visto como um sintoma de impunidade. Da mesma maneira, a pena não privativa de liberdade imposta ao empresário condenado por delito econômico aparece como um sinal de desigualdade.
Como contrapeso, surge o movimento da Lei e Ordem ("Law and Order"), que sugere a perspectiva de uma Justiça implacável, o agravamento de penas para delitos graves e a supressão de benefícios carcerários.
O movimento é pendular. No Brasil, a reforma do Código Penal de 1984 lançou as bases para a busca de alternativas liberais à prisão e a Lei de Crimes Hediondos, editada em 1990, plantou a semente do endurecimento.

. Eutanásia
É o homicídio praticado piedosamente para abreviar o sofrimento de alguém. No Brasil a eutanásia é crime, mesmo quando há o consentimento da vítima, punido com a pena prevista para o homicídio simples (reclusão de 6 a 20 anos), reduzida de um sexto a um terço. A proposta de despenalização da eutanásia esbarra hoje no desenvolvimento da medicina.

. Privacidade
As instituições detêm cada vez mais uma rede de dados capaz de esclarecer onde a pessoa esteve a cada instante e por qual motivo. Bastará reunir num sistema cartões de crédito, chapas de automóvel, estacionamentos, passagens, exames clínicos, telefonemas, impressões digitais, enfim, informações compatíveis com a linguagem do computador, e apertar o botão.
Diante de simples suspeitas, a inviolabilidade de sigilos tradicionais (fiscal, bancário, correspondência, conversação telefônica) pode ser quebrada.
A garantia dos sigilos, institucionalizada para a proteção dos indivíduos, passou a ser vista como um mecanismo ilegítimo, que serve apenas para proteger aqueles que têm algo a esconder.

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