São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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FILOSOFIA

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

. Valor
Desde Nietzsche, afirma-se que os valores valem, e não são. Isso se aplica tanto aos três valores "clássicos" da filosofia (a verdade, o bem e a beleza) quanto a seus aparentados (a moeda): todos só têm peso enquanto valem por e para determinados homens. Nenhum deles tem ser ou realidade própria. Só existem enquanto são avaliados, estimados, apreciados por seres que têm a peculiaridade de avaliar e medir o seu mundo, isto é, no caso, os humanos.
Ora, isso deixa instável a condição humana, que não se sustenta mais numa base firme -que seria, por exemplo, a verdade ou o bem como absoluto. Daí que este seja um ponto de conflito entre os que afirmam essa instabilidade (entre os quais estão os pós-modernos) e os que desejam uma base mais segura para o conhecimento e a ação.
Duas observações: 1. a renúncia à beleza como um valor objetivo, que data da arte da segunda metade do século 19, é aceita sem enormes crises. O problema está em não haver bem ou verdade seguros, o que perturba tanto a nossa ação, num mundo sem parâmetros consensuais, quanto o nosso conhecimento; 2. é engraçado que no Brasil a moeda, que só representa um valor, se chame "real". Nome que atesta uma ideologia eficaz (a moeda passa por realidade), mas uma filosofia bastante duvidosa.

. Verdade
Conceito que nunca foi, na filosofia, tão firme quanto parece ser na linguagem comum. O pensamento sempre o problematizou, mesmo quando dava enorme valor à sua busca.
Talvez a novidade hoje, na qual somos mais ou menos herdeiros dos antigos céticos, seja a ampla difusão de um ceticismo mitigado, em que as grandes convicções do passado são vistas como isso mesmo: como convicções que ajudavam a construir uma conduta e uma tranquilidade que não confrontassem alguma ordem vigente.
São pouquíssimos os que negam a verdade "fraca", isto é, que aqui e agora chove ou faz sol, que você está lendo este verbete etc. Mas esta verdade "fraca", que viabiliza nossa ação, entendida como uma navegação de cabotagem, não serve para dar razão do todo das coisas (continuando a metáfora, para navegar à volta do mundo).

. Representação
Conceito chave da filosofia moderna e, ainda, da atual. Designa: 1. a relação entre o significante e o significado, na linguagem, e seus análogos na teoria do conhecimento; 2. a relação política, pela qual o governante se legitima só porque representa (está no lugar de) seus governados; 3. o teatro, em que atores representam para uma platéia, usando de toda a sua arte para iludi-la etc.
Os sentidos dois e três estão ligados: um governante, que representa o povo e por isso deve servir a ele, procura representar para o povo e, portanto, iludi-lo. Teatro e política estão ligados, e as mudanças num (desde Artaud e Brecht se contesta esse modelo de teatro) repercutem na outra (a atualíssima discussão sobre a política como espetáculo, a insatisfação com quem encena sua atuação no poder, como Collor).
Alguns distinguem representação, que é legítima ou, pelo menos, inevitável numa sociedade moderna, e simulacro, que é simulação, contrafação. Critica-se o simulacro e faz-se da representação um ideal. O crescimento do simulacro seria um dos grandes problemas atuais, a que estaria vinculada a teatralização do espaço público.
O simulacro aparece tanto na política quanto na vida em geral, e se nota sobretudo na TV e nos meios de comunicação de massa, que levam as pessoas a viver por procuração: acreditam amar por meio de um ator ou cavalgar pelos "canyons" ao lado do homem de Marlboro.

. Poder
Distingue-se de força, que é bruta e unilateral: alguém maneja ou manipula outro, reduzindo ao mínimo sua capacidade de reação. Como consideramos os seres humanos iguais entre si, aplicar a força a eles é uma violência, só admissível em casos extremos (a prisão de um criminoso, por exemplo).
Nos últimos anos, acentuou-se a diferença entre força e poder. Entende-se que o poder depende de uma reciprocidade, de um diálogo, que se expressa pela palavra.
O problema, aqui, é que a força bruta parece só se manter como problema nos rincões abandonados do mundo (Ruanda, Bósnia, periferia de São Paulo e Rio). Já a ameaça à igualdade e a um poder que passe pelo diálogo entre iguais vem, cada vez mais, de uma nova modalidade de força: a econômica. O desafio, hoje, é domar politicamente o poder do capital, que, nestes últimos anos, não tendo mais antagonistas fortes, assumiu vários traços da antiga força bruta.

. Política
Como o poder, cada vez mais, se entende como uma relação humana expressa pela linguagem (em oposição à força), a política está cada vez mais sendo compreendida como só podendo ser democrática. Há uma tendência a considerar as outras formas -autoritárias, totalitárias- como estando do lado da força; ou a procurar ver nelas quais traços há de diálogo, de reciprocidade, que seriam seus vestígios ou indícios de democracia.

. Democracia
Duas novidades essenciais e uma polêmica. Primeira novidade: desde o fim da Segunda Guerra Mundial é um termo valorizado positivamente (antes disso, muitos se assumiam como antidemocratas), até por quem é autoritário ou totalitário, mas se diz democrata.
Segunda: aos sentidos tradicionais, de poder do povo (que data dos gregos) e de um governo limitado pelos direitos humanos (que nasce com a modernidade), se acrescenta o de poder pela palavra. Há democracia quando o poder é atribuído no diálogo -em outras palavras, é essencial, hoje, a idéia de uma palavra democrática.
A polêmica: enquanto alguns vêem a democracia essencialmente como um regime político, apto a resolver, em especial, os conflitos referentes à legitimidade do mando (visão mais restritiva da democracia), outros querem ampliá-la, democratizando, em especial, as esferas do trabalho e do afeto (amor, amizade, família).
Uma conclusão: a grande ameaça à democracia (ou à política), hoje, parece estar passando da força tradicional para a força econômica e, sobretudo, para a representação ou simulacro, que transforma o povo em platéia e o incapacita para seu papel ideal, que seria o de detentor da palavra final nos assuntos que a todos dizem respeito.

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