São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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TEORIA LITERÁRIA

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje em dia, a história é outra. A teoria literária, nos anos 90, parece em repouso, colhendo os frutos do que plantou, mas sem grandes inovações. Os verbetes abaixo resumem as correntes que permanecem tendo maior influência internacional no nosso tempo.

. Desconstrução
A desconstrução, diga-se logo, não é o contrário da construção, nem um equivalente acadêmico da destruição. Associada aos trabalhos do filósofo francês Jacques Derrida, em fins da década de 60, a desconstrução é, inicialmente, uma resposta filosófica a uma variedade de tendências: a fenomenologia de Husserl, o estruturalismo de extração saussureana, a psicanálise de Freud e Lacan.
Uma leitura desconstrutivista traz à tona a natureza problemática de todo discurso centrado em conceitos como verdade, origem, sentido. Para Derrida, não existe um significado último, por trás da linguagem, mas um sistema de "diferença" ("différence", em francês), combinando diferir (o significado das palavras nasce da diferença entre elas) e prorrogar (o significado é sempre adiado, a interpretação é infinita).
A vasta influência da desconstrução deu-se, a princípio, por via da teoria literária, especialmente da Escola de Yale: Paul de Man, Harold Bloom, J. Hillis Miller e Geoffrey Hartman, além do próprio Derrida. Para esses críticos, não existe uma identidade original perdida no exílio das palavras e não existe um sujeito anterior ao sistema de significação. O estudo da literatura deve voltar-se não para a identificação de valores, mas para o funcionamento retórico de um texto.
Nos trabalhos do belga Paul de Man, em especial, a leitura concentra-se sobre as reversões entre o literal e o figurado. A sedução da linguagem figurada nos faz esquecer, precisamente, a condição figurativa de todo discurso. Compete ao crítico, então, o estudo do sistema de figuras do texto.
Em De Man, como em Derrida, isso leva a uma preocupação crescente com a história e a ética. As questões filosoficamente complexas do fim da metafísica, da presença e da voz, da leitura e da escritura são subjacentes a um propósito mais amplo: impedir que um vocabulário exerça domínio sobre outro. A desconstrução está voltada para a resistência a qualquer forma de linguagem capaz de situar, antecipadamente, o que foi dito. Contra a tirania de significados transcendentais, a desconstrução instala outro domínio, plenamente secular, do pensamento.
Não se pode minimizar a influência da desconstrução. Seu legado é visível na história, no direito, nas ciências sociais e políticas, nos estudos da mulher, na arquitetura, na teologia, até na administração urbana. Na área da teoria literária, é o ponto de partida do neo-historicismo, do feminismo e outras correntes da atualidade. Sob vários disfarces, a desconstrução se faz sentir em cada elemento da esfera pública hoje. É a marca por excelência do nosso tempo.

. Neo-historicismo
Há uma certa ironia em constatar o prestígio do neo-historicismo nos mais importantes departamentos de teoria literária. Justamente a escola que pôs em xeque as categorias do estudo da literatura assumiu, na última década, a condição de ortodoxia. O fato já indica quais são os assuntos em pauta para o estudante de literatura, hoje: as relações entre práticas culturais e sociedade, a condição textual da história, as análises da ideologia e da constituição da subjetividade de uma perspectiva pós-estruturalista e, por fim, o exame da própria idéia de crítica literária e das noções que regem o currículo e o cânone da literatura.
O neo-historicismo está associado, primariamente, aos trabalhos de Stephen Greenblatt, no início dos anos 80, sobre a literatura da Renascença. Para ele, a história só é acessível em forma textual. Os textos, de sua parte, não são meramente a reflexão de alguma realidade prévia, mas contribuem ativamente para a sua constituição. A diferença entre as produções artísticas e outras formas de produção não é, além disso, algo de intrínseco aos textos. Cabe ao crítico, então, analisar as condições em que surge a "literatura".
Quem cria e quem define os significados culturais? O neo-historicismo procura responder a essas perguntas, à luz das obras de Michel Foucault, por um lado, e do antropólogo Clifford Geertz, por outro; e influenciado, ainda, pelo "materialismo cultural" de Raymond Williams, pela "metahistória" de Hayden White e pelas revisões marxistas de Althusser e Laclau. O neo-historicismo não deixa de ser uma espécie de etnografia, preocupada com as condições de representação de determinadas manifestações culturais, a que chamamos literatura.
Escrito por um crítico de inspiração neo-historicista, um verbete como esse analisaria a própria idéia deste suplemento, a possibilidade de compreender o nosso tempo com uma centena de verbetes superficiais; questionaria a identidade dos suplementos culturais, em geral, e do Mais!, em particular; e procuraria desvendar as relações simbólicas e as negociações de poder que se dão entre um jornal como a Folha e seu universo variado de leitores, autores e patrocinadores.
A influência do neo-historicismo se faz notar em outras áreas, como os estudos culturais e a crítica pós-colonial. Deixa marcas em virtualmente todo estudo literário avançado da atualidade. E permanece crucial para o debate sobre as formas de ensino da literatura e a organização do cânone.

. Feminismo
Ao contrário do que o nome sugere, o feminismo não diz respeito apenas às mulheres. Ele é o estudo de questões ligadas à definição de gênero e às condições de desigualdade entre o que uma cultura define como "masculino" e "feminino" -fundamentais para a constituição não só da sociedade, mas da subjetividade individual.
Na prática, a crítica feminista tem se concentrado na exposição dos mecanismos sobre os quais se assenta nossa cultura "patriarcal", com o objetivo de transformar as relações sociais. Mas não há uma definição simples de feminismo, como não há uma metodologia fixa. O feminismo também não tem uma mãe, como o marxismo e a psicanálise têm pais. Precursoras incluem desde Virginia Woolf até, de forma mais sistemática, Simone de Beauvoir, do lado francês e, na década de 70, Kate Millet e Adrienne Rich, para as correntes anglo-americanas.
Especialmente no contexto norte-americano, o feminismo se cruza com outras áreas, como a crítica pós-colonial, os estudos afro-americanos e os "gay and lesbian studies". Como elas, nutre-se das lições da desconstrução (o significado como efeito da linguagem, a crítica às oposições binárias) e das revisões marxistas, de Raymond Williams (o "materialismo cultural") a Althusser (análises pós-estruturalistas da ideologia).
A relação entre "mulher" e linguagem foi um tema central para as feministas francesas da década de 70 (Kristeva, Irigaray, Cixous); para elas, palavras como "feminino" e "masculino" não se referem a mulheres e homens: são funções de linguagem, indicando a posição do sujeito na cultura. O falogocentrismo sinaliza a prevalência do desejo masculino nas formas de pensamento do Ocidente.
A influência do feminismo nos estudos literários foi enorme. A relevância das alterações e acréscimos do cânone permanece motivo de disputa; mas nenhum crítico pode deixar de perceber, hoje, as marcas de gênero nos textos literários, nem defender a possibilidade de uma crítica neutra, imune a essas mesmas divisões.

. "Gender Studies"
Menos preocupada com as relações de desigualdade entre os "sexos" estudada pelo feminismo, mais voltada para definição do "gênero", a disciplina dos "gender studies" é uma dissidência cada vez mais forte e que arrisca tomar o lugar de preponderância nesses debates. O que não é ligado ao gênero na cultura? -este é o ponto de partida de autoras como Eve Kosofsky Sedgwick e Gayle Rubin. As próprias categorias de definição de gênero são postas em dúvida por elas, que se voltam com especial atenção para os casos mais prementes de indefinição cultural e legal (e literária), como o homossexualismo e o lesbianismo.
A noção crítica de sexualidade adotada nos "gender studies" tem origem na "História da Sexualidade", de Michel Foucault, que examina a produção da sexualidade moderna no (e pelo) discurso e as formas como o valor da verdade, em si, vem a se alojar no desvelamento ou expressão da verdade sexual. O advento da Aids tende a vincular as relações entre conhecimento e sexualidade à idéia de morte -seja na teoria, seja na própria literatura, num repertório que tem bebido bastante nesta fonte (o único caso atual de um fenômeno comum nos anos 70: a teoria impulsionando a criação literária).

. Perspectivas
Esses são apenas alguns dos conceitos mais importantes, numa área que não se caracteriza pela economia de correntes e termos. Mas as teorias, hoje, estão em repouso. Confrontados com tamanha variedade de opções e sentindo o peso da massa crítica dos anos 70 e 80, os novos críticos literários parecem oscilar entre duas tendências: 1) a migração, cada vez mais frequente, da teoria literária para outras disciplinas, como os "estudos culturais", os estudos da mulher, a cultura popular e o direito, em que a análise cultural e política dos textos é mais imediatamente relevante; 2) um retorno ao exercício prático da crítica literária, voltada para o leitor culto, mas não especializado. Entre tantos ismos, podemos, então, arriscar uma tendência para o futuro, uma escola sem escola, se nutrindo de tudo para ler: o personalismo.

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