São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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O silêncio do lobo

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE SAN FRANCISCO

San Francisco, na Califórnia (EUA), vestiu luto com a morte do poeta Allen Ginsberg, ocorrida no último dia 5 -manchete de todos os jornais, que, ao acontecimento, dedicaram páginas inteiras com poemas e relatos da ligação do poeta beat com a cidade.
Entre os principais poetas que participaram da chamada Renascença de San Francisco e da geração beat, Michael McClure e Gary Snyder ainda moram por aqui (outra das figuras centrais deste grupo que também sobrevive a Ginsberg é William Burroughs, que vive no Texas). Mas é sobretudo no poeta Lawrence Ferlinghetti, hoje com 76 anos, em sua livraria e editora City Lights, em quem pensamos a propósito da ligação de Ginsberg com San Francisco. Foi ele quem lançou Ginsberg e foi seu editor por 30 anos, até meados da década de 80. Isso explica que, no sábado, quando se soube da morte de Ginsberg, juntou-se na City Lights uma verdadeira multidão, pessoas comuns, admiradores do poeta morto, que ali encontraram refúgio para homenageá-lo e expressar sua tristeza.
Vozes reprimidas
Ginsberg já havia escrito alguma coisa (mas não publicada) antes da famosa leitura da Six Gallery, no dia 13 de outubro de 1955, na rua Fillmore, em San Francisco, organizada pelo poeta Kenneth Rexroth. Mas foi ali que Ferlinghetti ouviu, pela primeira vez, sua poesia. Era o poema "Howl". Naquela mesma noite, Ferlinghetti escreveria um telegrama ao poeta iniciante, saudando-o com as mesmas palavras empregadas por Ralph Waldo Emerson em sua mensagem a Walt Whitman, quando recebeu "Leaves of Grass" (Folhas da Relva): "Cumprimento-o no começo de uma grande carreira". E perguntava: "Quando recebo o manuscrito?".
Dois dias após a morte de Ginsberg, Ferlinghetti rememorava a ocasião, afirmando que "ele (Ginsberg) disse o que estava esperando ser dito. Fez a síntese cultural daquela época". De fato, o poema de Ginsberg serviu como uma válvula para liberar as vozes reprimidas no ambiente neovitoriano dos anos 50, nos Estados Unidos.
Ginsberg já convivera com William Carlos Williams (1883-1963) em Paterson, Nova Jersey, com ele aprendendo o uso da linguagem coloquial na poesia (além de Williams, viria a considerar como seus mestres também William Blake, Walt Whitman e Ezra Pound). Na realidade, como me disse aquela que é certamente uma das principais críticas de poesia nos Estados Unidos, a professora da Universidade de Stanford Marjorie Perloff, "ele também tinha vastos conhecimentos; 'Composed for the Tongue' (Composto Para a Língua) mostra que ele conhecia a prosódia de frente para trás e que conhecia a maneira exata como os poemas de Pound, Whitman e Blake funcionavam". Desde o início, ou seja, desde "Howl" (Uivo), sua marca inconfundível, que lhe rendeu admiradores e detratores, foi a de uma sinceridade radical e belicosa.
Ferlinghetti foi preso por publicar "Howl". Quando ganhou a batalha na Justiça, num processo que se tornou famoso, também conquistou uma grande vitória para a liberdade de expressão nos Estados Unidos.
"Lawrence, o que primeiro lhe ocorre que deve ser dito a propósito da morte de Allen?" Ele responde sem titubear: "Há um enorme buraco no céu, no mundo da poesia. Allen mudou a consciência da poesia para as gerações que se seguiram e em todas as regiões, na América do Norte, na América Latina, na Europa. Tinha admiradores espalhados pelo mundo todo, pessoas que talvez ele não conhecesse, mas que se sentiam suas amigas. Basta ver a quantidade de telefonemas recebidos pela City Lights nestes três dias, de todas as partes do mundo, de Moscou, de Belgrado, da Itália, de Praga".
E, apesar disto, Ginsberg, segundo Ferlinghetti, não teve o reconhecimento merecido. Nunca foi o poeta laureado dos EUA. "Há dois meses, escrevi a Bob Hass (o atual poeta laureado) propondo o nome de Allen", mas escolheram outro. Nunca ganhou o Prêmio Pulitzer. Nem o Nobel. "E me lembro que, em 1973, um membro da comissão do Nobel me disse que nunca dariam o prêmio a um homossexual".
Pode ter havido coerência no fato de um eterno rebelde não ter conseguido reconhecimento oficial por sua poesia. Só não morreu pobre. A Universidade de Stanford lhe pagou US$ 1 milhão por seus arquivos.
Perguntei ainda a Ferlinghetti como gostaria que Ginsberg ficasse para a posteridade: "Como no auge de sua carreira, há cerca de 15 anos. Desde então, ele vinha andando adoentado". De fato, Ginsberg havia contraído, já há muitos anos, uma hepatite de tipo C, e foi ela que, finalmente, se transformou no câncer de fígado incurável que ele só descobriu uma semana antes de morrer.
Cinco ou seis meses
Ginsberg começou, então, a ligar para todos os amigos. Falou com Ferlinghetti às 2h de domingo, 30 de abril. Disse-lhe que os médicos talvez divulgassem à imprensa que ele duraria de 5 a 6 meses. Mas ele sabia que não duraria 2.
Lawrence desligou o telefone abalado com a notícia e, ainda naquela noite, começou a escrever um poema: "Allen Ginsberg está morrendo" (leia com exclusividade nesta página). A imagem não lhe saía da cabeça durante aquela semana e, quando, no sábado, menos de uma semana depois, Ginsberg morreu, o poema estava pronto desde a véspera.
Ali há referências a uma foto conhecida de Ginsberg, segurando um tridente, à beira do Mar do Japão; a um poema de Kaváfis (1863-1933), intitulado "Os Cavalos de Aquiles" e que diz, num de seus versos, que "os cavalos de Aquiles começaram a chorar..."; e às sibilas, que são profetisas e feiticeiras.
Não são apenas os admiradores dos beats ou os amigos próximos, como Ferlinghetti ou William Burroughs, que frisam a importância de Ginsberg para a cultura norte-americana. Recorro aqui, uma vez mais, à opinião isenta de Perloff, a quem também perguntei como Ginsberg seria lembrado: "Eu diria que Ginsberg será lembrado não tanto por poemas individuais, mas pela coragem de todo o seu projeto. Ele nunca agiu somente para agradar aos outros ou para ganhar um prêmio. Ele fez só o que fez -com total comprometimento. E, como eu disse no meu ensaio 'Um Leão na Nossa Sala' (em 'Licença Poética'), ele conseguiu transformar cada desvantagem natural (pobreza, sua infância terrível com uma mãe louca, uma aparência física pouco atraente, sua homossexualidade, sua origem judia) numa virtude e ser um verdadeiro sobrevivente. Tantos de seus amigos morreram de overdoses etc.; Allen continuou".
Com a morte de Allen Ginsberg, aos 70, morre também mais um pedaço dos anos 60 e da contracultura.

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