São Paulo, domingo, 13 de abril de 1997
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ANTROPOLOGIA

MARCIO GOLDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos traços mais marcantes do desenvolvimento das pesquisas antropológicas nos últimos 50 anos parece ser o progressivo deslocamento de seu objeto. Se até a década de 40 a antropologia podia, com certa justiça, ser considerada a "ciência das sociedades primitivas" (concepção que subsiste até hoje, mesmo no senso comum ilustrado), a partir de então aquilo que, por contraste, se convencionou denominar "sociedades complexas" passou a atrair, cada vez mais, a atenção dos antropólogos.
Isso não significou o abandono do estudo das "outras" sociedades, mas uma problematização da própria noção de alteridade, convertendo nossa sociedade em objeto de estranhamento, observável de uma perspectiva "outra" (o que, grosso modo, distingue a perspectiva antropológica da sociológica). Ao mesmo tempo, tornou-se possível encarar com seriedade ainda maior as "outras" sociedades (o que afasta a antropologia das descrições exotizantes).
Esse deslocamento levantou questões sobre a manutenção das abordagens clássicas e sobre a relação da antropologia com as culturas que estuda. Questões sobre o objeto, a perspectiva e o sentido da antropologia -que se situam entre as que ocuparão a linha de frente das pesquisas antropológicas nos próximos anos.

. Complexidade
A oposição entre sociedades "simples" e "complexas" representa mais uma forma de enunciar a dicotomia que marcou a história da antropologia e do pensamento ocidental como um todo. As "grandes divisões" sempre serviram como instrumento ligado sucessivamente às aspirações de conquista ("pagão-cristão"), exploração ("selvagem-civilizado") e administração ("tradicional-moderno") das "outras" sociedades. Essas divisões ainda se manifestam hoje, especialmente a última, presente não apenas em algumas correntes da própria antropologia, como também em diversos projetos de hegemonia sociopolítica empreendidos nos Estados-nação contemporâneos.
A relação dos antropólogos com essas oposições sempre foi ambígua: fundada por elas e, muitas vezes, reforçando-as, a antropologia procurou também ultrapassá-las, seja na direção de um universalismo monista (no estruturalismo francês e nas tendências cognitivas contemporâneas), seja na de um relativismo pluralista (especialmente marcado na antropologia norte-americana).
Hoje, "sociedades complexas" é uma expressão que deve ser compreendida, como ocorre há muito tempo com "sociedades primitivas", sempre entre aspas, ou seja, servindo apenas para designar grosseiramente um certo campo de estudos.

. Singularidade
Não existem, pois, sociedades simples ou complexas, e a complexidade não corresponde a propriedades do objeto, mas a um certo ponto de vista -inexistência que não remete, contudo, a uma "complexidade" generalizada, que aboliria não só todas as diferenças, mas a si mesma. Basta meditar sobre qualquer cultura para que sua complexidade venha à luz, mas essa complexidade é sempre específica, singular: cada sociedade corresponde a um arranjo particular de elementos e processos gerais.
Nascido do encontro de uma civilização imperialista com as sociedades que sua expansão colocava no caminho, a antropologia surgiu com a invenção de uma imagem dessas sociedades que, invertendo a que fazíamos de nós mesmos, servia para corroborar nossa suposta superioridade e originalidade.
Apenas constituída, essa dicotomia pôde ser, em parte, abandonada, e os antropólogos passaram a estudar não mais a suposta oposição entre "nós" e "eles", mas tudo aquilo que parecia se situar do outro lado da fronteira. Tratava-se de demonstrar que algo de universal -de natural- permeava todas as diferenças culturais. De maneira oposta, esse esforço também conduziu a uma percepção mais aguda do caráter tramado das instituições sociais, de sua não necessidade.
Essa "desnaturalização" produziu efeitos na compreensão de nossa própria sociedade: em lugar de aceitar como dados os recortes e categorias por meio dos quais nós -cientistas sociais ou não- nos pensamos, os antropólogos tenderam a analisar os processos de produção social dessas realidades: nem naturais nem falsas, elas são propriamente culturais.
Ao ultrapassar as armadilhas da identidade absoluta e do relativismo generalizado, a antropologia pode retomar em novas bases sua questão mais clássica. Em lugar de escolher entre o particular e o universal, trata-se de determinar singularidades, entendidas como combinatórias locais (o que não significa diferença absoluta e irredutível) de linhas de força difusas (o que não significa universalidade absoluta).

. Antropologia simétrica
A antropologia atravessa atualmente uma terceira fase de sua história. Após separar "nós" e "outros" e escrutinar esses "outros", trata-se, para retomar uma expressão de Bruno Latour, de construir uma "antropologia simétrica", que, recusando essa falsa oposição, nem por isso reduza as sociedades a um conjunto homogêneo e informe.
A questão que se coloca hoje é a de como utilizar o saber acumulado durante um século e meio na elaboração de outras perspectivas sobre as sociedades. No momento em que se anuncia o "fim da história" ou o advento de uma era de "globalização" (em parte, versões dos velhos mitos ocidentais da evolução e do progresso), abrem-se novas possibilidades para um olhar treinado na observação de realidades tão diferentes que obrigam a assumir uma postura desnaturalizante.
Ao se esforçar para pôr entre parênteses aquilo que nossa sociedade toma como natural, a antropologia abre uma perspectiva diferente sobre essa sociedade. Processo que a conduz a tomar a forma de uma crítica cultural que, desnaturalizando a nós mesmos, permite revelar as tramas subjacentes ao que consideramos como dado.
Desse modo, as sociedades ditas "primitivas" não podem mais servir de ilustrações de nosso passado ou de laboratórios privilegiados para a descoberta de uma suposta natureza humana. Quando levadas efetivamente a sério, revelam outros agenciamentos humanos, ajudando, assim, a problematizar nosso presente e -quem sabe- imaginar nosso futuro.

Márcio Goldman é professor de pós-graduação em antropologia social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de "Razão e Diferença - Afetividade, Racionalidade e Relativismo no Pensamento de Lévy-Bruhl" (Ed. Grypho/Ed. da UFRJ).

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