São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 1997
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A PM como um relâmpago em céu azul

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

No dia em que a televisão mostrava uma nova sessão de espancamento, um conhecido meu estava às voltas com escombros de um atentado no Camboja. Seu nome é Thomas Hammaberg, um sueco, que agora trabalha na ONU e tenta garantir os direitos humanos por lá.
Thomas dirigiu a Anistia Internacional e dizia que, ao visitar o Brasil, já no final da ditadura militar, teve a sensação de que na vida cotidiana do país existia tortura, embora não conseguisse ver, diretamente, nenhum caso concreto. Era apenas um sentimento difuso, uma indiferença extra-oficial, íntima mesmo, que extraía do próprio espetáculo superficial de uma rápida visita.
Thomas não se surpreenderia com os vídeos de Diadema e Cidade de Deus. Mas no Brasil, apesar -ou talvez por causa- de estarem imersos nesse cotidiano, muitas pessoas parecem ter acordado de um longo sono. Descobriram que a polícia bate nas pessoas, tortura e rouba o dinheirinho que trazem no bolso.
Sempre nos espantamos com certos espetáculos materiais. Os cineastas amadores, escondidos na escuridão da noite, conseguiram, de novo, o milagre do fogo. São os herdeiros de Caramuru.
Tanto no Rio como em Diadema, os policiais gritavam que o lugar era uma boca de fumo. Essa é a primeira linha divisória. Não era uma boca de fumo, perderam parte do apoio.
Uma nova linha então é traçada no discurso de indignação: as vítimas eram trabalhadores. Não eram, portanto, desempregados ou vagabundos. Menos apoio.
Casados? Sim, eram casados, chefes de família. Então não eram, ou, pelo menos, possivelmente, não eram veados. Menos apoio.
Desde que me entendo por gente, a polícia bate. Nos últimos anos, a música tem insistido na tecla: Caetano e Gil, Titãs, Planet Hemp, quase todas as bandas que surgem, dão o seu recado: o Haiti é aqui.
Mas agora o psicodrama nacional está em curso. É como se um grupo de PMs estivesse gritando todo o tempo no nosso ouvido: circular, circular. E todos os figurantes jogam para a cena, indignados, pegando bonde.
É assim que se dão saltos históricos. Honra seja feita à técnica da comunicação. Duas câmeras escondidas no escuro. Juruna lançou o gravador e a mensagem sempre esteve no ar: a última palavra em técnica pode detonar.
Muita gente vai ficar no caminho. Vai dizer: mas sempre houve repressão, a diferença apenas é que agora foi filmada. Pequena diferença, mas essencial. Nada se transforma num fato político se não foi adequadamente filmado, mesmo um assassinato em massa, uma invasão do território alheio.
Se alguns sonolentos políticos brasileiros tivessem acesso a apenas um dia de recortes dos jornais estrangeiros, veriam também como o mundo ficou pequeno. Jornais da Finlândia, Filipinas, todos falando da PM brasileira como uma escola de horror.
Os escândalos já não circulam apenas nas fronteiras nacionais. Imediatamente, empresas que iriam se instalar no Brasil querem mais dados, turistas, quase que por um instante, desviam-se da rota -enfim um prejuízo incalculável.
Nossa violência existe nas malhas da globalização. Todos podem ver lá fora o povo levando pancada. Em Diadema, havia um Rambo; na Cidade de Deus, um Rambinho, portanto um modelo também globalizado, um desses lixos que importamos com a maior aplicação, como sucata industrial e pneus usados.
O Brasil está no limiar de uma grande transformação cultural. Basta multiplicar câmeras invisíveis e lances de criatividade como o dos cinegrafistas de Diadema e Cidade de Deus. Mas é preciso voltar as lentes também para o interior de cada um, aquele espaço mental onde se concilia com a violência, às vezes até inconscientemente.
Eles nos mandam circular, circular. Nós vamos andar para a frente, para a frente.

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