São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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Só o humor de Eddie Murphy humaniza "O Negociador"

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Em "O Negociador", a horas tantas entra a cena -que fez história no cinema mudo- da mocinha presa, prestes a ser cortada por uma serra elétrica. Um herói, esbaforido, tenta salvá-la.
A novidade não é essa, claro. A novidade é que este clichê quase centenário é uma das melhores coisas do filme.
Pelo menos ali temos a sensação de estar diante de um ser humano, com dores que podemos partilhar, com o frescor de algo vivo.
A norma, em "O Negociador" é o exato oposto: um acúmulo caótico de situações "espetaculares", colocando o espectador frente a seres com existência puramente cinematográfica.
A começar por Scott Roper (Eddie Murphy), especialista da polícia de San Francisco em passar a conversa em assaltantes que mantêm reféns, sequestradores, essa coisa. Ou seja, um negociador.
É uma especialidade inexplorada pelo cinema, o que teoricamente facilitaria as coisas.
Logo, porém, vemos que nos está reservado o "fast food" de sempre: nosso herói tem um amigo, também tira, que é morto; devido à dedicação profissional, a namorada Veronica (Carmen Ejogo) o abandonou; a chefia o força a engolir um parceiro-aprendiz (Michael Rapaport) com o qual ele não simpatiza, mas que no fim vai se revelar um ótimo comparsa.
A trama também reserva poucas surpresas.
No centro dela, há Korda (Michael Wincott), um criminoso cheio de determinação, no caminho de Scott. Como Scott também está em seu caminho, e também é determinado, cria-se entre os dois uma rivalidade nada cordial.
Na verdade, algumas cenas com Korda estão entre as melhores do filme. Logo na sua primeira entrada, ele é mostrado como um tipo intelectual, sem nenhuma tendência evidente para a criminalidade.
Mais tarde, durante um assalto, ele mostra a Scott a orelha de um dos reféns, como demonstração daquilo que poderá fazer para chegar a seus fins.
Embora a orelha seja uma idéia escandalosamente roubada de "Veludo Azul" (de David Lynch), não deixa de ser eficaz.
Tudo isso acontece, a bem dizer, ainda no início do filme, quando também fica em relevo o que há de mais humano na personalidade de Scott: o fato de ser viciado em corridas de cavalo.
Tudo isso acontece antes de entrarmos na tradicional ciranda de perseguições e explosões que caracteriza esse tipo de filme.
Thomas Carter, realizador de vasta carreira na televisão, demonstra uma impessoalidade grandiloquente neste filme. É um aplicado diretor de segunda unidade, que controla de forma conveniente a produção e as cenas de perseguição.
Talvez por isso, o que "O Negociador" tem de mais interessante são certas dúvidas que suscita. Exemplos: qual o destino do jogador de beisebol que namorava Veronica?; terá Scott se livrado do vício do jogo?; uma moça que passa por experiências tão traumáticas como as descritas no filme precisará depois de algum tratamento?
Obviamente, não passou pela cabeça de ninguém resolvê-las. "O Negociador" nega a seus personagens um mínimo de humanidade (por isso, falha miseravelmente no suspense), tanto quanto se satisfaz com as convenções cinematográficas. Acomoda-se, por fim, em ter Eddie Murphy, sua presença, seu humor, para evitar que o espectador durma a sono solto. É pouco.

Filme: O Negociador
Produção: EUA, 1997
Direção: Thomas Carter
Com: Eddie Murphy, Michael Rapaport, Michael Wincott, Carmen Ejogo
Quando: a partir de hoje nos cines Gazeta, Paulista 2, Center Iguatemi 1, West Plaza 1 e circuito

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