São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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A vaca, a serpente e o fim da história

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Outro dia, em conversa com amigos, um deles reclamou que coloquei num romance metido a realista (ou neo-realista) uma vaca que fala. Não me senti insultado -nem era caso para isso. O amigo gostara do livro, apenas reclamava da minha vaca que num romance de 300 páginas diz ao todo cinco ou seis pequenas (mas não definitivas) frases.
Fiquei insultado, e muito, quando ele mencionou o realismo mágico, embora não chegasse ao opróbrio de falar em García Márquez. Aí sim, eu teria reagido à altura, puxando a arma que não uso ou convidando-o a um duelo para reparar a ofensa e manter íntegra a minha honra.
Lembrei-lhe apenas que o maior livro da humanidade, fabulário que criaria o imaginário (a rima ficou inevitável) do homem ocidental, ficou sendo a "Bíblia", pelo menos até segunda ordem. E, dentro dela, o mais importante são os cinco livros que formam o Pentateuco, atribuído aleatoriamente a Moisés ou ao Espírito Santo, autores bem anteriores não somente a García Márquez como a La Fontaine e Esopo.
E o primeiro desses livros, o "Gênesis", logo nas primeiras páginas coloca uma serpente falando. Para ser exato, a Serpente, com direito à maiúscula.
O espírito de Deus pairava sobre as águas, não havia mundo nem história. E disse Deus: "Fiat lux!'. E a luz foi feita. Depois, sucessivamente, Deus foi falando e, à medida que falava, ia criando o dia e a noite, a terra e os mares, o céu e as estrelas, os peixes e as aves. Até que teve a terrível (e reprovável) idéia de criar o homem: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". Depois, criando sem saber o ditado segundo o qual a emenda é sempre pior do que o soneto, Deus criou a mulher, na discutível ou deplorável suposição de que não convinha ao homem ficar só.
Nem por isso a besteira da criação ficara consumada. Ficara apenas perfeita. O próprio Deus ia achando tudo bom, "e viu Deus que isso e aquilo era bom". Ou melhor, a criação acabara mas a história não começara. Só começaria no lance seguinte, quando a Serpente entrou em cena. Enroscada na Árvore do Bem e do Mal, ela bancou antecipadamente o lobo de outra fábula, a do Chapeuzinho Vermelho. Assim como o Lobo, muitos séculos mais tarde, falaria e convenceria Chapeuzinho a mudar o itinerário da casa de sua avó, a Serpente falou e convenceu Eva a comer o fruto da árvore proibida, que não sei porque, a tradição achou que devia ser a maçã -fruta decorativa mas sem sabor suficiente para ser emblema do limite entre o Bem e o Mal.
Vejamos a cronologia dos fatos. Deus falou ("Fiat Lux"). Foram as primeiras palavras pronunciadas no Universo que emergia do Nada. Surgiram os astros, os répteis, os oceanos, o homem e a mulher. A segunda palavra foi a da Serpente, "se comeres deste fruto sereis iguais a Ele". Pronto: estava criada a História.
Se Eva, primeiramente, e Adão depois, não tivessem ouvido a Serpente com aquela insinuação de esperança e orgulho, não haveria o pecado original, tampouco a História. Estaríamos, até hoje, no Éden, gozando as maravilhas do Paraíso Terrestre, nus e felizes, sem necessidade de comermos o pão com o suor de nosso rosto, nem a mulher teria as dores do parto -com o que não haveria obstetras.
Não conheceríamos a morte e teríamos a companhia de Deus que estaria entre nós, como o pastor no meio de suas ovelhas, distribuindo conosco a eternidade de sua bem-aventurança. Caim não teria matado Abel, não teria havido o Dilúvio, nem o rapto das Sabinas, nem a Guerra dos Cem Anos, nem o saque de Roma, a peste de Milão, o terremoto de Lisboa, o espancamento de Diadema e o programa do Faustão.
Tudo isso existiu porque a Serpente, logo depois do "Fiat lux", parece que indevidamente, falou alguma coisa. Daí que não vejo extravagância alguma em ter colocado uma vaca falando em história minha que nem de longe ousa merecer a transcendência de livro sagrado.
Bem verdade que tive a prudência de colocar uma lona por cima -detalhe que Deus se esqueceu de providenciar. Daí também, que embora imperfeito e mortal, acho que Deus ou não sabia bem o que estava fazendo ou, por qualquer motivo ainda não esclarecido pela ciência ou pela religião, deixou o circo para ser criado posteriormente.
Os numerosos filósofos que desde os pré-socráticos se espantaram diante da falta de sentido para o homem e para o resto da Criação, perderiam o emprego se Deus, antes mesmo de a Serpente falar, tivesse jogado em cima do Universo recém-criado a tal lona colorida que abrigaria o Gran Circo do qual seria eficiente e indisputável empresário.
Erro que, modéstia à parte, não repeti. Minha vaca falou, não disse nada de aproveitável -nem era o caso. Mas não esqueci de jogar a lona por cima de tudo. Poderia ter contado a minha história sem a vaca, assim como Deus poderia ter criado o mundo sem a Serpente. E aí sim, Ele poderia descansar no sétimo dia sabendo que havia feito uma obra melhor -e eu aqui não estaria ganhando o pão com o suor do meu rosto e a amargura da minha fadiga.

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