São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 1997
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Traição e amizade animam o filme

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Todo filme que se diz baseado em uma história real devia ser visto com desconfiança. Como a vida imita a arte, é provável que a realidade, uma vez transposta para a tela, sofra de falta de originalidade.
É o que acontece na primeira parte de "Donnie Brasco", em que o agente Joe Pistone, do FBI, com o nome de guerra Donnie Brasco, faz amizade com Lefty, pequeno mafioso de Nova York.
Feito o contato entre o tira e os gângsteres, o diretor Mike Newell (de "Quatro Casamentos e Um Funeral") dedica-se à descrição dos meios mafiosos, suas rivalidades, problemas etc.
Sobre esse particular, Newell medita sem modéstia, numa entrevista: "Qual o último filme sobre a Máfia realmente descritivo? Acho que 'O Poderoso Chefão'."
Na verdade, há outros: "Os Bons Companheiros" e "Cassino", de Martin Scorsese, "Scarface" e "O Pagamento Final", de Brian De Palma, "O Poderoso Chefão 3", de Francis Coppola, ou "Era uma Vez na América", de Sergio Leone. Todos são descritivos. Todos interessam mais que "Donnie Brasco", por uma razão ou outra.
Isso não quer dizer que este seja um filme desprezível. Por dois ou três motivos, "Donnie Brasco" está inclusive acima da média do cinema americano atual. O principal deles é que, após o início convencional, o filme lança algumas âncoras interessantes.
A primeira é o sentimento de lealdade que se cria entre os dois homens. Sentimento torto, porque Lefty realmente se entrega ao parceiro, mas Donnie não passa de um traidor um tanto sórdido.
A segunda vem a seguir, quando Donnie introjeta a amizade por Lefty e passa a viver, de fato, uma existência dupla: é amigo e traidor, serve à Máfia e à polícia. Ou seja: vive pisando em brasas.
É nessa segunda parte do filme, também -a partir do ponto em que a gangue viaja para Miami-, que a ação se consolida. E aí, "Donnie Brasco" se firma.
Nesse ponto, a Máfia, que parecia uma máquina de crimes quase inexpugnável, entrega-se à prática de uma série de erros infantis. Até os chefões tornam-se vulneráveis. Nota-se a existência de uma estrutura que sobrevive, independente dos seus personagens. Estes, mesmo os poderosos, são descartáveis.
Esse aspecto, de longe o mais interessante do filme, convive com outros bem menos animadores. O mais evidente deles vem da incapacidade dos realizadores em perceber que fatos reais não são necessariamente interessantes.
Assim, as tensas relações entre o policial e sua mulher parecem saídas direto de uma novelão. Não se sustentam, dramaticamente (prova disso: uma das melhores sequências do filme -e uma das raras com humor- é a que mostra Donnie e a mulher em um terapeuta de casais, instante em que a mútua incompreensão se cristaliza com muito mais força do que nos vários momentos de dramalhão).
No fim, "Donnie Brasco" é um pouco isso. Um filme que anda, ajudado por um grupo muito bom de atores, mas que anda meio às cegas. Não incomoda, mas não se destaca; deixa-se ver, mas não chega a ser marcante.

Filme: Donnie Brasco
Produção: EUA, 1997
Direção: Mike Newell
Com: Al Pacino, Johnny Depp, Michael Madsen, James Russo
Quando: a partir de hoje, nos cines Astor, Belas Artes Villa-Lobos, Center Iguatemi 3, Top Cine 2 e circuito

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