São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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A quinta-feira de Clóvis dos Santos e Roberto Campos

ELIO GASPARI

Na quinta-feira da semana passada, 5.000 trabalhadores sem terra entraram na Esplanada dos Ministérios na hora do almoço pedindo reforma agrária.
Na hora do jantar, no Rio de Janeiro, 500 convidados entraram no Copacabana Palace para festejar os 80 anos do economista Roberto Campos. Podiam parecer cenas de dois países distantes. São assombrosamente próximos.
Faltava pouco para o meio-dia quando os nove motociclistas da PM que tinham aberto o caminho da marcha dos sem-terra pelos dez quilômetros da Asa Sul de Brasília deixaram a pista. Afastaram-se para que a manifestação se fundisse com a concentração da Central Única dos Trabalhadores, na vizinhança do Eixo Monumental. Um deles, o sargento Cícero Lourenço da Silva Neto, 41 anos, é filho de lavrador sem terra do interior do Rio Grande do Norte. Seu colega Edson Vieira de Medeiros, 33 anos, é neto de Manuel Paulino, cangaceiro de Lampião.
Atrás deles, iam 5.000 brasileiros com histórias diferentes, todos sem terra para trabalhar. Todos com as camisetas brancas do MST impecavelmente limpas, como as camisas dos smokings do jantar do Copacabana Palace.
Alguns eram veteranos, como Zenon Kovalki, 47 anos, assentado desde 1991, depois de viver 21 meses acampado. Kovalki é daqueles militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, que podem dizer uma frase mágica: "Estive na Anoni". Isso significa que ele viu o MST nascer na invasão da Fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul, em 1979. A ditadura militar achou que resolvia o problema entregando-o a um coronel, o fazendeiro tentou resolvê-lo oferecendo uma propina a um amigo que tinha um amigo no Planalto. Aquela invasão parecia coisa de visionários incapazes de entender a onipotência do poder militar. Hoje, o assentamento de Kovalki (Guaíba) produz o melhor leite da rede de abastecimento de Porto Alegre. Dos seus 7 irmãos, que não cabiam na terra do pai, 2 estão assentados. Sua filha Raquel, de 16 anos, está na sétima série do supletivo. Kovalki é um militante impregnado pelo jargão esquerdista do MST. Quando quer dizer que é melhor deixar para resolver um assunto no dia seguinte, diz assim: "Como proposta de encaminhamento, a gente se ajeita e vê amanhã o que se faz".
Dois meninos do Pantanal
Outros, como Clóvis dos Santos, 49 anos, mulher, seis filhos (quatro na marcha, inclusive o de 18 meses), chegaram há pouco. Viveu nove meses acampado, invadiu a Fazenda Santa Amália e assentou-se há seis, na Nova Conquista, em Mato Grosso do Sul. Ele e a mulher viveram 15 anos como bóias-frias a R$ 5 pela jornada de trabalho. Não reclama dos patrões, mas lhes entende a lógica: "Dos fazendeiros eu não falo mal, porque o pouco que eu ganhava, recebia. Só que não dão roça de jeito nenhum. Fazem pasto, mas não dão roça."
Clóvis tem fortes olhos castanhos. Seu pai morreu quando ele tinha três anos. Era operário da Fábrica Matarazzo, em Catanduva (SP). Sua mãe, Ernestina, criou oito filhos costurando para fora. Viviam em casa própria e lhes faltava pouco para chegar à classe média. Ainda garoto, Clóvis dos Santos resolveu trocar a casa da mãe pelo trabalho na roça e foi para Minas Gerais. Ele acredita que aquele prédio de Brasília com duas caçambas invertidas é o Palácio do Planalto.
No Copacabana Palace, debaixo de dois grandes lustres de cristal e diante de um belíssimo arranjo de flores verdes e amarelas, o economista Paulo Rabello de Castro estava saudando Roberto Campos, quando viu num pedaço de sua vida a oportunidade para uma piada. Levando em conta que Campos nasceu na região de Cáceres e andou de carro de boi pelo Pantanal de Mato Grosso, considerou-o "um precursor do movimento dos sem-terra". Como Clóvis, Roberto perdeu o pai ainda moço. Como Ernestina, sua mãe (Honestina) sustentava a casa costurando para fora. Como Clóvis, Roberto saiu de casa ainda jovem. Clóvis saiu na direção errada, a da roça. Roberto, na certa, a do estudo. Um poderia ter entrado na classe média e foi sugado. Vagou pelas lavouras do Paraná ao Pantanal, sem jamais ter recebido um ceitil do governo. O outro poderia ter permanecido na classe média miúda do interior, mas, alavancado por uma compulsiva vontade de aprender, vagou pelos sete mares como servidor público. Presidiu o BNDES, foi embaixador em Washington e Londres e ministro do Planejamento.
O andar da desordem
No jantar do Copacabana Palace, bem como no Palácio do Planalto, os sem-terra eram vistos como potenciais encrenqueiros (se voltarem a invadir fazendas). Por diversos critérios, o Brasil de smoking e vestido longo poderia ser confundido com a ordem. O da marcha, de bermudas e pés deformados, fantasma da desordem. Seria muito bom se fosse assim, mas no Copa cruzava-se com as lembranças da imensa desordem do andar de cima da vida nacional. Lá estava o senador José Sarney, caso único de presidente de um partido de apoio a uma ditadura que acabou se tornando o presidente encarregado de conduzir a redemocratização. Lá estavam duas gerações de pessoas encarregadas de costurar um problema típico dos governos desordenados: o colapso da dívida externa. Uma geração era a do próprio Campos e do embaixador Walther Moreira Salles, renegociadores do calote deixado pelo janguismo nos anos 60. No Golden Room, dançando "La Vie en Rose" cantada por uma razoável imitadora de Edith Piaf, o professor Carlos Geraldo Langoni, que na geração seguinte presidiu o Banco Central durante a quebra dos anos 80. Mais adiante, o general Carlos de Meira Mattos, que comandou a tropa encarregada de fechar o Congresso Nacional em 1966. Bagunça por bagunça, os sem-terra ainda têm muito chão pela frente.
Na marcha de Brasília, o presidente Fernando Henrique Cardoso (cujos escritos na oposição não podem ser confundidos com seus discursos de governante, aumentando a desordem dos anos 90) era insultado. Locutores que ainda não descobriram uma boa rima para azucriná-lo repetiam slogans medíocres e informavam o seguinte:
"Com Fernando governando
o Brasil vai se afundando".
Ou:
"FHC é vendido
entregando o ouro ao bandido".
No Copa, seu nome não estimulou grandes palmas e partiu do próprio Campos cuja "fibra de guerreiro" o presidente elogiou numa carta de cumprimentos, uma cruel estocada. Contou que recebera um telefonema de FFHH e lhe dissera:
- Você ainda tem um incrível sotaque socialista.
Só FFHH seria capaz de tamanho prodígio. No mesmo dia, foi acusado de "neoliberal" e "vendido" no almoço do andar de baixo e de "socialista" no jantar do andar de cima.
Essa circunstância talvez pudesse alegrá-lo, mas na quinta-feira ficou demonstrado que, se ele sabe lidar com os convidados do jantar, a turma da marcha tem algo de esquisito, de inédito. Seu governo tentou destruí-los e sofreu a maior derrota política do reinado.
É gente que passa dois meses marchando, monta uma barraca de plástico preto com oito troncos e nove ripas em apenas uma hora (cabem 12 pessoas). Não sabem quem é Roberto Campos. (Clóvis arrisca que é um político, mas não lembra que idéias defende.) Morrem nas mãos da PM do Pará, mas na Estrada do Gama, em Brasília, emprestam suas capas de chuva aos policiais que estão controlando o trânsito. Falam mal do governo com a mordacidade de Campos.
Delmar Carlos Schaft, de 19 anos, assentado há dois anos em Herval do Sul:
- O governo só dá recursos na televisão. Na terra, nada.
Lembram do dia em que acamparam como se lembrassem do próprio aniversário e contam com orgulho quando já conseguem plantar o necessário para comer. Parecem novidade, mas nada há de mais velho.
O PT faz uma força terrível para dar a entender que tem uma profunda irmandade com esses homens e mulheres de sandálias. Na quarta-feira, o governador do Espírito Santo, Vitor Buaiz, parou numa pequena concentração de marchadores. Vestia roupa esporte e boné do MST. Na quinta, o governador de Brasília, Cristovam Buarque, juntou-se à marcha. Também vestia roupa esporte e boné do MST. Eram falsos votos de simplicidade. Seus motoristas os esperavam nos carros, suportando ternos escuros e gravatas, no melhor estilo da nobiliarquia estatal.
25 quilos de Ris Pilaf
Os sem-terra sabem o que querem: terra para sair da enrascada de quatro séculos em que caíram. Remi Sabino de Oliveira, 47 anos, instalado nas cercanias de Governador Valadares, viveu quase dois anos acampado na beira da BR-116, mal consegue comer, nada entende de política e acha que já começou a ganhar a parada:
- Eu não sei ler. Tenho um filho na sexta série, um na quinta e outro na quarta. Minha vida melhorou. Só os meus filhos estarem estudando é uma graça que recebo.
A hora do almoço em Brasília e a do jantar no Copacabana Palace confirmaram uma afirmação feita por Roberto Campos em seu livro de memórias, "A Lanterna na Popa":
- No palco brasileiro, há que reconhecer que minha geração fracassou.
O fracasso da geração de Roberto Campos -e por que não da seguinte?- esteve na incapacidade de superar a miséria nacional. Suas soluções nada têm a ver com as do MST, mas, por motivos e propostas tão diversas, a quinta-feira da semana passada foi um dia importante nas vidas de dois jovens nascidos no Pantanal matogrossense e criados por mães viúvas. Roberto Campos festejou 80 anos e Clóvis dos Santos foi a Brasília.
O jantar do Copa, servido por garçons, teve menu em francês. Traduzido, resultou em folheado de galinha com queijo, caldo de carne com verduras e filé de vitela (magnífico) com batatas. Cada convidado dispunha de cinco copos e seis talheres (uma colher, duas facas e três garfos).
Em Brasília, o almoço dos sem-terra de Goiás foi produzido por duas voluntárias da Paróquia de Bom Jesus dos Imigrantes, de Sobradinho. "O boião", como foi anunciado, chegou na carroceria de uma Kombi, em seis panelões e uma caixa de isopor forrada de papel laminado com 25 quilos de arroz (ris pilaf, num menu francês). Tinha também galinha caipira, cozido de abóbora, macarronada, salada de batata, farofa e feijão. Ia tudo para um só prato e cada sem-terra tinha seu próprio garfo. Comeram 300 pessoas, organizadas em seis filas.
Quando o último sem-terra encheu o prato, a fila não tinha acabado. Seis mulheres e duas meninas de uma favela de Brasília observaram a cena. Achegaram-se. Queriam comida.

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