São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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Cosmopolitas ou capitães do mato?

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Pois é, minha gente, os sem-terra estão aí, pedindo passagem para ingressar no século 20. É isso mesmo. O Brasil é tão aferrado às suas tradições patrimonialistas que tem o privilégio de exibir para o mundo um conflito agrário de grandes proporções no limiar do século 21.
Há quem ouça com horror essas afirmações e reparta a sua angústia entre arrumar as malas e prever o caos. São os que sonham com a democracia dos patrícios. Nada mais natural em um país em que os liberais de um século atrás liam à noite Stuart Mill e, pela manhã, acordavam os escravos sonolentos derramando-lhes às costas o óleo do candeeiro que servira de lume.
Desgraçadamente para os partidários da democracia restrita ou gradual e segura, a experiência do século 20 demonstra que a aceitação plena das regras de uma sociedade "avançada" supõe a presença das massas como protagonistas ativos das transformações e do progresso. O resto é tentativa inútil de quadrar o círculo ou esquadrinhar ovo para encontrar pelugem.
O regime militar bem que tentou a "modernização pelo alto" e deu no que deu. Não é sem razão que os patrícios se reuniram no Copacabana Palace para agradecer as proezas do autoritarismo, encarnadas na figura ilustre do dr. Roberto Campos, cuja herança vaga pelo Brasil em busca de terra, comida e trabalho.
A modernização pelo alto e a famigerada "teoria do bolo" ampliaram e reproduziram o apartheid social, originário do escravismo. Assim, o natural conflito de classes do capitalismo industrial e moderno se desenvolve num espaço de profundas desigualdades nascidas no capitalismo escravista. Essa peculiaridade da formação econômica e social brasileira torna extremamente difícil a execução de políticas reformistas graduais. A "acumulação histórica" de problemas transforma as situações de conflito em arsenais de explosivos, prestes a ir para os ares.
A integração das massas nos padrões de consumo, cultura e convivência oferecidos pelo capitalismo contemporâneo exige reformas mais profundas nas relações de propriedade e de trabalho, e modalidades muito avançadas de cidadania, que incluem o direito à remuneração sem qualquer vinculação ao emprego.
Na Europa, hoje, diante das transformações tecnológicas e da organização empresarial que afetam a estrutura e a qualidade do emprego, a discussão se trava em torno do direito ao "rendimento universal".
Aqui a melhoria do padrão de vida dos deserdados e desdentados entra em choque com os preconceitos e o reacionarismo das classes educadas e cosmopolitas.
Agora, outra vez, a vulgata do pensamento dominante proclama a queda das fronteiras, a internacionalização dos mercados, os formidáveis movimentos de capitais. Essas admirações são o adorno da alma nativa. Vem de longa data a atitude basbaque das camadas dominantes, da classe média para cima, com o que vem de fora para dentro.
Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida cultivam o cosmopolitismo "avant la lèttre", o que expressa uma secular e singular repugnância pelas condições reais do país, pela vida miserável das classes subalternas.

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