São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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Nas mãos dos juízes

FÁBIO KONDER COMPARATO

São Basílio Magno viveu no século 4º, na região da atual Turquia denominada Capadócia. O grande problema social de então era o pauperismo crescente, provocado pela má distribuição da terra e agravado pela agiotagem. Sagrado bispo em 370, Basílio declarou-se logo em guerra contra esse estado de coisas, e passou a combater latifundiários e agiotas com a arma da santa indignação. Eis o que dizia em um sermão:
"A quem prejudico, conservando o que me pertence? -pergunta o avarento. Mas quais são, pergunto eu, os bens que lhe pertencem? Donde você os tirou? Você é semelhante a um homem que, aboletando-se num estádio, pretende impedir a entrada dos outros espectadores, para apreciar sozinho o espetáculo ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: eles se proclamam únicos donos dos bens comuns de que se apropriaram, simplesmente porque foram os primeiros ocupantes" (6º sermão contra a riqueza).
Santo Ambrósio, do mesmo século 4º, foi também um bispo incomum, a começar pelo processo de sua escolha: quando o alto clero se perdeu em conchavos e rivalidades pessoais para a escolha de um novo bispo, o povo indignado levantou-se em plena catedral de Milão e exigiu que Ambrósio fosse reconhecido publicamente como o único pastor legítimo da comunidade. Foi uma autêntica revolução do povo de Deus contra a oligarquia eclesiástica.
O problema social dominante, na região milanesa, era também a escandalosa desigualdade entre um punhado de proprietários rurais e a multidão indigente. Ambrósio enfrentou a questão sem as habituais untuosidades eclesiásticas: "Até onde vocês, ricos, estenderão a sua louca cobiça? São, por acaso, os únicos habitantes da Terra? Por que razão vocês rejeitam os que têm igual direito a partilhar os bens da natureza, e os reivindicam unicamente para vocês? A terra foi atribuída em comum a todos, ricos e pobres. A que título vocês se arrogam a qualidade de únicos proprietários?" E insistia, martelando as palavras: "A terra pertence a todos e não aos ricos, mas os que a possuem são muito menos numerosos que os proprietários despossuídos" (Sermão sobre Nabot, o pobre).
Quase mil anos depois, santo Tomás voltou ao tema. Já passara então de moda a esplêndida rudeza da velha patrística. Predominavam no século 13 as sutis distinções do raciocínio escolástico, todo feito de contraposições dialéticas.
Apesar de falar mais com a razão do intelecto do que com a indignação moral, o Doutor Angélico, ao comentar os mesmos trechos acima citados de são Basílio e santo Ambrósio, chegou a idêntica conclusão. "Relativamente às coisas exteriores", disse ele, "tem o homem dois poderes. Um é o de administrá-las e distribuí-las. E, quanto a esse, é-lhe lícito possuir coisas como próprias. O outro poder que tem o homem sobre as coisas exteriores é o uso delas. E, quanto a este, o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, de modo que cada um as comunique facilmente aos outros, quando delas tiverem necessidade" (Suma Teológica, segunda parte da segunda parte, questão 61, art. 2).
Consideremos agora a situação presente, neste limiar do 21º século da era cristã. Num país solenemente batizado como Terra de Santa Cruz, a multidão dos sem-terra, dos sem-teto e dos sem-trabalho começa, mal e mal, a medir forças com proprietários, patrões e seus representantes no governo. Volta à baila a mesmíssima questão social da época de decadência do Império Romano e da Baixa Idade Média.
Há agora, porém, uma enorme diferença: o direito positivo, e não apenas o direito natural, condena a monopolização de bens em mãos da minoria rica. A Constituição da República resume numa frase, curta e densa, toda a argumentação patrística e escolástica contra a má distribuição da riqueza: "A propriedade atenderá a sua função social" (art. 5º, inciso 23).
Trata-se de um princípio jurídico fundamental, que, nessa qualidade, como reconhece a mais autorizada doutrina, sobrepõe-se a todas as regras particulares da legislação ordinária.
Dois exemplos. No conflito possessório entre o proprietário anti-social e o não-proprietário que deseja lavrar a terra, ou não tem moradia, a Constituição manda fazer prevalecer o direito deste último. A indenização justa, em caso de expropriação de imóvel desviado de sua função social, não pode, sem ofensa à Constituição, ser equivalente ao valor de mercado do bem.
Estamos, pois, aqui, como em tantas outras matérias vitais para a democracia brasileira, inteiramente nas mãos dos nossos juízes. Deles depende, hoje mais do que nunca, a defesa desta verdade simples e terrível: a de que todos os seres humanos nascem iguais, em dignidade e direitos.

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