São Paulo, domingo, 20 de abril de 1997
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Mão-de-obra qualificada

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA

Manias típicas das diferentes profissões aparecem na hora de cozinhar
O economista que separa minuciosamente os ingredientes antes de começar a cozinhar, a decoradora que se preocupa com a cor da comida, o cirurgião plástico que tira as nervuras da carne com um bisturi e a dona-de-casa que age pela intuição.
As profissões são diferentes, o hobby é o mesmo -cozinhar-, mas a maneira como eles fazem isso varia de acordo com a área que escolheram para trabalhar.
Separar ingredientes, seguir fielmente as receitas e medir as gramas de cada um dos componentes de um prato faz parte da rotina de quem atua no campo das ciências exatas.
Já a combinação das cores dos alimentos e a preocupação com a beleza dos pratos é para quem lida com profissões mais artísticas.
No primeiro caso, o economista José Renato Fráguas, 39, pode ser considerado um exemplo. Cozinha há oito anos e sempre faz o que chama de sua "mise en place" antes de acender o fogão, o que inclui preparar, picar e separar todos os ingredientes.
Fráguas descobriu a culinária quando procurava uma atividade relaxante. Com o tempo, foi se aperfeiçoando, e hoje é presidente do clube de gastronomia Amigos de Babette, formado por 24 executivos que se reúnem uma vez por semana para cozinhar.
"Sou metódico e muito ligado em detalhes. Faço tudo demoradamente, minuciosamente, talvez por causa da minha profissão. Não faço nada sem estar tudo pronto. Acho que assim o acabamento e a finalização ficam muito mais rápidos", diz.
Com a dona-de-casa Carmem Vergueiro, 63, acontece o oposto. Carmem diz que tem tanto "tempo de estrada" que já não segue mais receita. "Tenho tanta prática que não preciso saber peso ou medida. Tenho 'feeling'", diz.
Como uma boa administradora de cozinha, ela não desperdiça nada. Faz compras três vezes por semana e sempre traz para casa os produtos da estação. "Quando vejo os ingredientes que tenho, elaboro o prato. Não jogo comida fora", afirma.
Beleza e sabor
Mas se economia -ou desperdício- são tão importante para alguns, para outros o que importa é a beleza dos pratos.
A decoradora e paisagista Léa Carvalho escolhe seus ingredientes seguindo uma preocupação estética com a comida. E, contando com 15 anos de experiência na cozinha, afirma que nada melhor para a decoração de um prato do que a própria cor do alimento.
"As pessoas comem primeiro com os olhos. O bom é uma comida fresca, feita na hora, que tem cor e brilho. A comida requentada sofre mudança de cor e fica opaca. Quando faço arroz, por exemplo, uso receitas com legumes, carne ou frango, então o prato fica bem decorado com os próprios ingredientes."
A influência da profissão também transparece nos cuidados de Léa na hora de por a mesa. Ela só usa louça branca, que realça o alimento -"pode ser a louça mais linda, inglesa, mas desprezo, deixo na parede"- e talheres grandes e pesados. Copos, só transparentes: "odeio copo colorido, que tira o sabor da bebida -deveria ser proibido".
Para a decoração da mesa, só flores naturais. "Adoro o brilho dos talheres e copos, mas acho que a mesa tem de ser apenas um pano de fundo para a refeição, pois só a comida decora."
Bisturi
O cirurgião plástico Luiz Carlos Martins, 50, especialista em estética, concorda com Léa quando diz que o ato de comer está ligado à aparência e garante que, quando cozinha, "pode não estar gostoso, mas está esteticamente agradável".
Só que Martins usa métodos um pouco "diferentes" quando está na cozinha. A minuciosidade do cirurgião se reflete aqui no cozinheiro, e Martins não dispensa um bom bisturi na hora de tirar as nervuras e as impurezas da carne antes de prepará-la.
"Com a mesma qualidade que trato a pele humana, trato a comida", afirma. "Na minha vida profissional, trato tecidos com delicadeza, então transfiro essa habilidade manual para a cozinha. Cada profissão pode acrescentar algo para a culinária", diz Martins.
Seus bisturis entram na cozinha nas mais diversas receitas. "Quando faço perna de javali, que é muito musculosa, uso o bisturi para limpar as nervuras e gorduras. Com broto de aspargo também uso. Tem uma película fina que tem de ser tirada, senão perde-se o sabor. Delicadeza no trato dos ingredientes é fundamental."
Como médico, ele diz que a estética do prato é importante até do ponto de vista fisiológico. "A primeira fase da digestão é a saliva. Então, um belo prato ajuda o processo. Qualidade é fazer um prato bonito mas com todos os sabores preservados."
E o cirurgião vai ainda mais longe na associação entre medicina e culinária. "A pessoa tem uma personalidade, suas características. Melhorando a sua aparência, ela se sente melhor. Ao mexer no externo, o interno aparece mais. Com a comida é a mesma coisa. Um prato bonito é tão agradável esteticamente quanto uma pessoa bem vestida, bem apresentada. Tudo na vida tem de ter beleza."
Cartesianos
Mas, se a profissão influi na hora de cozinhar, para a "chef" de confeitaria brasileira Mari Hirata, 37, radicada há 15 anos no exterior, a nacionalidade e o sexo não são diferentes.
"Quando dei aula no Japão, as mulheres queriam dicas para o dia-a-dia, macetes. Já os homens queriam receitas para fazer em festas, com uma apresentação mais legal, daquelas que você fica três dias preparando. A cultura culinária no Japão é predominantemente masculina e caracterizada pela minúcia", diz.
Na França, segundo a confeiteira, as pessoas têm culturalmente uma relação diferente com a comida. "Os homens franceses são extremamente gourmets, mas não na hora de fazer os pratos. Preferem pratos que não exigem técnica muito apurada. Já as mulheres têm mais gosto por coisas mais sofisticadas, como 'pâtisseries'. Elas não pensam tanto na cozinha do dia-a-dia."
Mari está no Brasil para dar um curso de confeitaria no Boa Mesa 97 (leia texto à página xx) e, no que diz respeito à profissão, ela concorda que exerce uma forte influência na gastronomia. "Quando a pessoa é engenheira, ou trabalha em uma área exata, pede receitas com medidas em miligramas", brinca. "Fica perguntando: 'porquê você pôs sal na clara? Porquê você cortou aquilo daquele jeito?'. "É o lado cartesiano mais apurado. Eles perguntam tudo", diz.
"Já os músicos, estilistas e pessoas ligadas à arte têm até um jeito de olhar mais poético. São bem mais intuitivos, gostam de experimentar. Tentam aproximar a receita à forma como gostam do prato, e não ficam seguindo tudo à risca."

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