São Paulo, sábado, 26 de abril de 1997
Próximo Texto | Índice

Guerrilheiros foram do Exército, diz ex-refém

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A LIMA

Embaixador boliviano conta que escreveu cartas de despedida para a família e dá detalhes do cativeiro em Lima

Alguns dos guerrilheiros que ocuparam a residência do embaixador japonês em Lima durante 126 dias eram desertores do Exército do Peru.
A revelação foi feita pelo embaixador da Bolívia em Lima, o ex-refém Jorge Gumucio Granier, durante entrevista concedida à Folha na noite de anteontem.
Segundo o embaixador, os desertores haviam lutado na guerra de fronteira no vale do rio Cenepa contra o Equador, em janeiro de 1995. Gumucio afirma que entre os sequestradores havia jovens. "Dois ou três com uns 17, 18 anos. Estavam sem perspectivas na vida e foram cooptados."
O diplomata era um dos três principais reféns em poder dos 14 guerrilheiros do MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru). "Eu dormia entre (o chanceler Francisco) Tudela, que ficava à direita, e o embaixador (japonês Morihisa) Aoki, que ficava à esquerda", afirmou o boliviano de 57 anos.
Gumucio, que ontem voltou a La Paz para se reportar a seu governo, detalhou o cotidiano dos 72 reféns que ficaram em poder do MRTA desde 17 de dezembro.
"O consumo de pílulas para dormir era alto. Acho que 70% dos reféns tomavam. Eu não, mas nunca dormi mais de duas horas direto por noite", disse.
Despedida
O embaixador contou também ter escrito cinco cartas de despedida para sua família. "Na hora da ação final, lembrei que havia escrito as cartas dois meses antes. Pensei: meu Deus, não há tempo para atualização!", afirmou.
Por fim, Gumucio abandonou o discurso diplomático e atacou a estrutura de poder do Peru ao ser perguntado sobre os efeitos políticos da crise.
"O sistema democrático é mais eficiente na Bolívia. É importante não haver setores da população que se sintam excluídos", disse.
A seguir, leia os principais pontos da entrevista de Gumucio:
*
A OCUPAÇÃO - "Foi tudo muito rápido. Lembro que eles tinham panos brancos na cara e disseram: 'Não somos sanguinários como o Sendero Luminoso'. Perguntaram quem era embaixador e mandaram subir as escadas.
No topo, encontrei pela primeira vez (o líder do MRTA) Néstor Cerpa Cartolini. Ele me disse: 'O sr. é embaixador?' Respondi: 'Sim, da Bolívia'. Ele completou: 'Ai, que pena, porque o sr. não vai sair vivo se não soltarem nossos companheiros'. Achei que ia morrer."

O NATAL - "Eu me lembro pouco dos primeiros 15 dias. O que me recordo bem é das músicas de Natal. Eram vozes só de homens, barítonos quase. Foi a melhor canção de Natal que já ouvi. No Ano Novo, nós nos abraçamos todos com muita emoção."

A ROTINA - "Nós acordávamos cedo, por volta das 6h. Tomávamos café ou chá, e os japoneses, sopa. Havia pão. Em três ou quatro grupos nós fazíamos ginástica por uns 40 minutos. Depois, havia fila para tomar banho. Só havia três banheiros na casa, e a água quente ficava em tonéis.
Aí, ficávamos jogando cartas e outros jogos, além de contar piadas. Entre 12h30 e 13h era servido o almoço, seguido pela sesta, até as 15h30. Entre 16h30 e 17h nós ouvíamos programas de rádio nos quais nossos parentes mandavam mensagens.

AS DIFICULDADES - "O pior foi no começo, quando havia mais de 200 reféns. Não havia água, banho ou comida suficiente. Perdi 5 kg na primeira semana. Depois, não tínhamos o que ler. Só havia livros em japonês na casa. O consumo de pílulas para dormir era alto. Acho que 70% dos reféns tomavam.
Eu não, mas nunca dormi mais de duas horas direto por noite. Dormia, ao todo, umas quatro horas picadas. O espaço era reduzido, dormia com nove pessoas. Cada um tinha sua 'seção', com direito hierárquico: fiquei com o espaço de um diplomata subalterno."

A IDEOLOGIA - "No começo, a gente conversava muito. Falei com Cerpa umas quatro ou cinco vezes. Ele me pareceu não conhecer conceitos marxistas como o materialismo histórico, seu discurso era apenas muito duro contra o capitalismo. Tentamos convencer os guerrilheiros a lutar no campo político, com um acordo de paz como o ocorrido na Guatemala. Eles diziam: 'Não é original'."

OS TERRORISTAS - "Eram muito jovens, dois ou três com uns 17, 18 anos. Estavam sem perspectivas na vida e foram cooptados. Eram da selva e tinham baixa educação. Um japonês tentou ensinar um deles a ler, e nós acabamos proibidos de conversar com eles, talvez por medo de que pudéssemos influenciá-los. Havia duas mulheres, uma de 18 e outra de 24 anos. Os outros tinham entre 25 e 35 anos.
Alguns haviam sido membros do Exército, tinham treinamento militar e lutaram contra o Equador. Desertaram. Todos tinham um ou dois parentes nas cadeias. Quando uma das meninas chorou porque não aguentava a pressão, os chefes disseram para ela: 'Quando seu parente for solto, você verá que valeu a pena'."

O MEDO DA MORTE - "Tive medo de morrer, no começo. Depois, não tinha medo, mas não achava que ia viver -apenas tinha a esperança.
Há uns dois meses escrevi, nas bíblias que a Cruz Vermelha Internacional nos mandou, cartas para minha mulher e para meus quatro filhos. Cartas de adeus.
Na hora da ação final, lembrei que havia escrito as cartas dois meses antes. Pensei: meu Deus, não há tempo para atualização! Havia avisado um membro da Cruz Vermelha das cartas, mas não sei que fim levaram as bíblias.
Entre os reféns, havia a seguinte conta: em tese, deveriam morrer em um resgate uns 30% de nós. Fizemos as contas e dava algo entre 15 e 20 pessoas. Não queria ser uma delas. Quando ouvi as explosões e os tiros, me encomendei a Deus e à Virgem."

O FIM - "A ação foi, na minha cabeça, demorada. Achava que tinha durado duas horas, quando foi menos de 45 minutos. Não esqueço dos barulhos e senti medo porque havia treinamento semanal de como nós seríamos executados. Os guerrilheiros tinham granadas costuradas em suas camisas.
Um pequeno grupo de reféns sabia da ação, não sei quem nem sei se havia comunicação de dentro para fora. Quando tudo começou, avisaram para não gritar e para ficar jogado no chão.
Um dos guerrilheiros entrou no quarto para nos matar e não o fez. Apontou, mas queria matar (o chanceler) Tudela, que tinha se escondido. Aí, foi morto, e nós saímos. Só chorei quando vi minha mulher. Não pretendo voltar para aquela casa."

Próximo Texto: Governo tenta enterrar líder sem presença de família
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.