São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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O cinema da atitude

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Estrada Perdida", de David Lynch, é uma atitude. Acontece com a atitude o mesmo que acontece com o tempo: quando não me perguntam o que é o tempo, escreveu Santo Agostinho, sei muito bem o que o tempo é; quando me perguntam, não sei mais dizer. Quando vemos uma atitude, sabemos o que é; quando não a vemos ou temos de dizer em que consiste, impossível defini-la. Nada de inquietante nisso: a palavra atitude não veio para revelar o que é, nem o que encobre; o sabor dessa nova palavra-fetiche está em sua indefinição, em sua vagueza. Mas como David Lynch imprime sua atitude numa fita, que é dura e permanece diante dos olhos, surge a possibilidade de descrevê-la, pelo menos.
Um modo de agarrar a atitude pelo rabo é se perguntar não o que ela é e, sim, como ela é, como ela "faz". Lynch opera neste filme, como em "Veludo Azul" e "Twin Peaks", com dois temas caros ao cinema industrial: o sexo e a violência.
Mas sexo e violência não aparecem em seu cinema de modo escancaradamente realista, naturalista, vêm envoltos num clima (esta é outra palavra significativa) de estranheza. Não de estranhamento: estranheza. Inquietante estranheza, se diz (como se a estranheza pudesse ser outra coisa). As situações são normais, mas o comportamento estranho de personagens -o detetive em "Twin Peaks", as personagens de Dennis Hopper e Isabella Rossellini em "Veludo Azul"- ou da câmera ou da luz tingem o clima com um toque indefinido capaz de desviá-lo de uma normalidade (a normalidade da vida, da narrativa e da visão cinematográficas).
Desde "O Homem Elefante", Lynch lida com o "tremendum", com o que é terrível, temível, formidável. Essa é a mola central de atração em seus filmes. Mas há o "tremendum" de "Édipo Rei", o "tremendum" de "Macbeth" e o "tremendum" possível do cinema industrial, o de Lynch por exemplo: um genérico e vago "tremendum", latente sob um véu translúcido e que, ao final, se desvanece em fumaça.
Esse truque da transformação do "tremendum" em fumaça é de um tédio abismal. Em "Veludo Azul" havia um núcleo duro, irredutível, que resistia a essa alquimia e ao qual o espectador podia se agarrar; em "A Estrada Perdida", esse núcleo desapareceu. O esteticismo do filme e o recurso ao sobrenatural, que supostamente amenizam seu sensacionalismo e o abrem às platéias que buscam o sensacionalismo sem admiti-lo, antes acentuam o cheiro azedo da alquimia do que o disfarçam. No lugar do esteticismo poderia haver uma estética; e o trato com o sobrenatural aparece, no cinema ocidental e americano, por demais impregnado dos tradicionais toques de horror e do terror visíveis.
David Lynch é um bom artesão do cinema. A natureza e o uso do som em "A Estrada Perdida" são muito interessantes (interessante se diz daquilo que poderia ser notável se fosse a parte de um todo harmônico). E Lynch tem boas intenções: descobriu a lógica de seu sistema e quis levá-la às últimas consequências. Aparentemente, atua nos limites extremos do cinema comercial. Quando se pensa, porém, nos Cohen ("Fargo") ou em Woody Allen ("Todos Dizem Que Eu Te Amo"), que percorrem a mesma faixa fronteiriça de terreno, admite-se como possível a hipótese de que a lógica do sistema de Lynch é, na verdade, a exata lógica do cinema planamente comercial. Há vários domínios no interior desse cinema, e Lynch soube encontrar, detectar, aquele que preza ou lhe convém: o cinema da atitude, o cinema-atitude. O cinema-quase.

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