São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997 |
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O sonho atemporal
VINCENT KATZ
O filme abre com uma tomada de um painel de intercomunicação. Obviamente, a comunicação será um tema importante. Mas o homem no apartamento não pergunta quem é. Em lugar de apertar o botão "falar", ele simplesmente aperta "ouvir" e recebe uma mensagem ameaçadora. Fred é um músico que vive em Los Angeles, numa casa com alpendre de cimento. O interior da casa está sempre escuro ou banhado numa luz vermelha forte. A mobília é de madeira, estilo anos 50, e os abajures, de estilo art déco. É difícil situar a época em que a história acontece. Vemos residências térreas, em estilo "rancho", e os carros parecem datar de mais ou menos 1970, mas os personagens parecem ser mais ou menos atuais. Roupas, carros e até construções possuem uma qualidade genérica, impossível de situar no tempo (a cadeia, por exemplo, não é uma das cadeias modernas que estamos acostumados a ver). Essa atemporalidade, que, na maioria dos filmes, seria defeito, neste filme é produto de uma visão deliberada (como também o é a trilha sonora). Nela subjaz o sentimento de impotência que enerva o(s) protagonista(s) e cria um ambiente que lembra algo saído de um sonho, sem ser fútil. As fronteiras desse mundo se deslocam constantemente, como na adaptação feita por David Cronenberg de "Almoço Nu", de William Burroughs. Neste, eram as drogas que produziam os deslocamentos, como, por exemplo, quando os lábios do personagem de Paul Bowles diziam uma coisa, mas Burroughs ouvia outra. Em "A Estrada Perdida" não se trata de drogas, e isso é explícito. É algo mais sinistro, mais invisível, que distorce as coisas. Não há tantos detalhes visuais em "A Estrada Perdida" quanto havia em "Veludo Azul", por exemplo. Aqui, boa parte da ação se dá no escuro. Com isso, os detalhes que aparecem se destacam ainda mais cruamente. Em uma cena, o jovem Pete descansa numa cadeira de plástico no jardim. O gramado verde se estende até uma cerca de madeira branca, em frente a um muro de blocos de concreto. Mas não são blocos de concreto comuns: são blocos sofisticados -dois tons diferentes de marrom, com espessuras diferentes. Pete olha sobre o muro, vê uma piscininha de criança e uma cadeira dobrável de metal. Esses elementos industriais da realidade normal não são cômicos, nem pitorescos -infelizmente, estão muito distantes do dilema que Pete se vê enfrentando. Tudo parece ser dominado por um espírito de desesperança e desânimo, e isso se reflete na decoração. A única coisa que parece viva é Alice, e ela é, obviamente, uma ilusão, repleta de falsidade. Patricia Arquette faz os papéis de Renée e Alice. No papel da primeira, é uma morena quase catatônica. Como a segunda, é uma loira platinada, um dínamo de energia ilimitada. No papel de Renée, exala sensualidade narcótica; no de Alice, carnalidade explosiva. Juntas, formam o pivô dinâmico do filme. As roupas e o estilo de Alice poderiam ser de qualquer época entre os anos 50 e 70, mas sua maquiagem é contemporânea. Algumas das falas do filme poderiam ter sido ditas por Humphrey Bogart: "Gosto de me lembrar das coisas a meu próprio modo". Outras, são versões anos 90, insossas, de idéias clássicas: "Vou ficar em casa e ler. Pode me acordar quando você chegar em casa, se quiser". Sem falar no humor doentio de uma das frases de Mr. Eddy: "Andar na cola de outros carros é uma coisa que não tolero". Não demoramos a ficar sabendo que há outras coisas que Mr. Eddy não tolera. Tradução de Clara Allain Texto Anterior: O cinema da atitude Próximo Texto: A armadilha das aparências Índice |
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