São Paulo, sexta-feira, 2 de maio de 1997
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Reforma financeira "via" Judiciário

TARSO GENRO; HERMANN BAETA

Ao discriminar os trabalhadores, o Estado parece querer dizer que só lhes resta a ação direta violenta
TARSO GENRO e HERMANN BAETA
Algumas graves decisões que vêm sendo tomadas pelo Judiciário brasileiro constituem uma perigosa revisão da sua tradição de independência em relação ao Executivo. Sempre que não esteve submetido à força da ditadura, o Judiciário funcionou como o repositório das esperanças dos cidadãos agredidos pelo arbítrio, seja nos seus direitos políticos, seja nos direitos sociais.
Apontemos, porém, um fato-síntese gravíssimo que, se for confirmado, simboliza o desamparo que vai esbulhar os direitos da cidadania, numa sociedade que ainda luta para afirmar-se como democrática e civilizada. Trata-se do fim do "garantismo jurídico" -no que se refere à classe trabalhadora- e da segurança jurídica, como valor constitucional fundante do conjunto de direitos da cidadania moderna.
A União foi derrotada em inúmeras ações judiciais, que determinam o pagamento de diferenças salariais originárias dos prejuízos causados pelos planos econômicos, como o Plano Bresser. Ao iniciar o cumprimento das sentenças, depois de longo e penoso procedimento, foi deflagrada uma subversão completa do princípio da segurança jurídica, que deve caracterizar qualquer ordenamento democrático.
Vendo que os valores devidos aos seus servidores eram vultosos, a União vem ajuizando ações rescisórias, remédio judicial previsto no Código de Processo Civil, que não suspende e jamais suspendeu, na tradição do Judiciário brasileiro, a execução de qualquer sentença. Essa ação -a rescisória- é absolutamente excepcional e não pode impedir, segundo o disposto no art. 489 do mesmo Código, a satisfação plena do direito reconhecido na sentença de processo em definitivo: "A ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda", diz o referido artigo do Código de Processo Civil.
Pois bem, além de ter conseguido duas sentenças absolutamente inadmissíveis sob qualquer ângulo legal (que rescindiram decisões favoráveis aos assalariados), a União, por meio de medidas liminares solicitadas nas ações rescisórias em curso, vem suspendendo a execução das sentenças transitadas em julgado, por meio de uma incompreensível cumplicidade do Judiciário. Comete violência, assim, contra aquilo que é o fundamento estruturador de uma ordem jurídica civilizada: a segurança jurídica obtida em definitivo pelo devido processo legal.
Trata-se de uma violência inominável, jamais cometida em nosso país, sequer para proteção do direito de propriedade, aliás, o mais bem protegido pelas nossas leis civis. Mas é de pasmar!
A suspensão da execução das ações transitadas em julgado está sendo concedida também pelo Judiciário Trabalhista. Esse tem se prestado para obstaculizar o direito ao recebimento de verbas tipicamente salariais, invertendo assim a sua finalidade tutelar, razão de ser dessa Justiça especializada.
E o argumento é o seguinte: o trabalhador não terá como devolver ao empregador os valores se as ações rescisórias forem julgadas contra o empregado! Ou seja, a Justiça, tanto a Federal como a do Trabalho, passa a proteger, por medidas liminares não amparadas em lei, interesses dos que foram condenados a pagar diferenças salariais!
É o reconhecimento, pelo Judiciário, de uma espécie de subcidadania dos trabalhadores, lesados pelos malfadados planos que periodicamente vêm assolando a vida econômica e jurídica do país. Ao discriminar os trabalhadores, excluindo-os dos princípios constitucionais que embasam a própria estabilidade social -com o direito de ação esvaziado e a segurança jurídica relativizada-, o Estado parece querer dizer que só lhes resta a ação direta violenta e a rebelião contra o sistema.
Eis o papel provocativo, na verdade, que o Executivo insta o Judiciário a cumprir, já que o governo federal não teve condições de, no Parlamento, solicitar o alongamento da dívida, ou nem mesmo reduzi-la nas decisões discutidas em milhares de ações. Com as pressões que imprimiu sobre o Judiciário, que pela sua história certamente deverá reagir, o governo vem fazendo uma duvidosa reforma financeira, à custa da independência dos tribunais. E o faz como se os juízes tivessem provocado a crise financeira do Estado e, para remediá-la, os direitos da cidadania devessem ser agredidos.
Caso o Judiciário acolha essas ilegalidades flagrantes e sem tradição na história do processo civil brasileiro, centenas de milhares de ações serão revisadas por um Poder que vem alegando, aliás, que a súmula vinculante é uma saída para reduzir o número sufocante de processos em trâmite. Pois bem, se isso ocorrer, desta feita o caos será provocado pelo descumprimento de princípios constitucionais pelo próprio Judiciário, que pode ser vitimado pelas suas próprias contradições.

Tarso Genro, 50, advogado, é membro da Direção Nacional do PT. Foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal pelo PT-RS (1989-90). É autor de "Na Contramão da Pré-História" e de "Utopia Possível".

Hermann Baeta, 64, é presidente do Instituto dos Advogados do Brasil. Foi presidente do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de 1985 a 87.

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