São Paulo, sexta-feira, 2 de maio de 1997
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O buraco é nosso

JOSÉ SARNEY

Há um dado novo no problema da Vale que não pode ser menosprezado: a denúncia do Cade, órgão governamental, de que os seus possíveis compradores, qualquer dos habilitados, proporcionará uma concentração de rendas e levará à cartelização os setores de minério de ferro e alumínio, básicos na economia nacional.
Ora, se as motivações que levam o governo a privatizar a Vale são as de assegurar a economia de mercado, livre concorrência, retirando o Estado da economia, iremos substituir os males do Estado pelos mesmos males, só que, agora, em mãos particulares.
Aliás, os fundamentos da livre concorrência, como concebida há dois séculos, esbarraram nos abusos do poder econômico, determinando isso que se quer acabar, que é a interferência do Estado nos negócios privados. Para evitar esses abusos foram montados mecanismos de controle.
Nos Estados Unidos, a vigilância sobre a possibilidade de monopólios e cartéis é severa. Aqui no Brasil a coisa corre frouxa. A lei que impera é de acordo de preços. Quem quer que pense em abrir um negócio tem como primeira providência procurar os concorrentes e acertar preços.
Na verdade, quem sofre com isso é o povo, pagando mais caro e comprando produtos inferiores. Daí a necessidade de abrir as importações para quebrar os oligopólios internos.
Ora, se a privatização da Vale vai possibilitar a criação de um grande cartel, provocar um abuso do poder econômico anunciado, por que não, antes, estabelecer uma política industrial que evite esse trágico passo?
Outro aspecto relevante que merece ser examinado na venda da Vale do Rio Doce é o problema das concessões. O governo diz que não há perigo porque o subsolo é patrimônio nacional.
Esse argumento é falacioso e inconsistente. Nenhuma companhia privada está pensando em mudar a geografia, transferir o subsolo para fora do Brasil.
Elas desejam é explorar o que tem dentro do subsolo. Carajás é a maior província mineral da face da terra. Tem bilhões de toneladas de minério de ferro, milhões de manganês, prata, bauxita, ouro e outros minerais raros.
A Vale tem a concessão, para a eternidade, até o último quilo, de explorar esses minerais. Quem comprar a Vale tem esse direito. Assim, dizer que o subsolo é nosso, sabendo-se que os minerais são dos outros, é um argumento vazio. Na verdade, o buraco que fica, esse sim, é patrimônio nacional.
As concessões de rádio, TV, estradas, pontes são por 15, 30 e até 50 anos. A partir daí, os bens voltam ao governo. A Vale não. Suas concessões são eternas. Por que, então, antes de vendê-la, não limitar, no tempo, as concessões de exploração?
Considero que a privatização da Vale não é uma vulgar operação de compra e venda. Não é tão simples como parece. Não é uma questão de modernidade, é um problema de consciência nacional. A Vale está no imaginário popular como uma razão de auto-estima do povo brasileiro em sua capacidade de realizar e explorar suas riquezas.
Não é por acaso que a juventude, a vanguarda desse idealismo, vai para a luta com paixão, expõe-se aos perigos que existem em todos os conflitos de rua.
Privatizada ou não a Vale, o episódio não vai se esgotar no leilão da Bolsa. Queira Deus que não seja um divisor de águas, num país tão dividido.

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