São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Os perigos da filosofia

THELMA LESSA DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A versão em português da obra capital de Sartre, "O Ser e o Nada", supõe um esforço inestimável que, no entanto, pode ser compensado, já que pode ser útil tanto ao leigo quanto ao especialista: o primeiro teria a facilidade de poder ler o texto em sua própria língua; para o segundo, uma tradução fixaria critérios que poderiam até mesmo estabelecer padrões de convenção.
Ambos os objetivos seriam legítimos do ponto de vista do autor. Sabe-se que a terminologia utilizada pelo existencialismo apresenta consideráveis desafios. Ao escrever "O Existencialismo É um Humanismo", Sartre atestou não apenas estar ciente desse fato, mas ainda assumiu, como compromisso filosófico, a tarefa de tornar sua doutrina acessível a um público menos restrito. A sedução que o movimento filosófico havia provocado extrapolou o círculo dos especialistas e suscitou polêmicas que exigiram uma tomada de posição por parte de Sartre. Alguns esclarecimentos lhe pareceram necessários e foi, então, que esse texto de divulgação teve lugar, como se sabe.
Diante disso, a iniciativa de traduzir "O Ser e o Nada" é coerente com algumas das posturas do próprio autor. Trata-se, no entanto, de um projeto temerário. Isto porque o hermetismo da terminologia sartriana, na realidade, supõe questões teóricas que não podem ser reduzidas a problemas de tradução, pois envolvem querelas interpretativas. Além de considerá-las, a tradução do texto sartriano deve também acautelar-se pela via da letra do próprio texto.
O próprio Sartre, tanto na forma como no conteúdo, expressou as dificuldades e riscos da interpretação. Na terceira parte do livro, ele descreve algumas das artimanhas da linguagem: "Mas, nessa tentativa primordial ("tentative première") para encontrar uma linguagem fascinante, caminho às cegas, pois me oriento somente pela forma abstrata e vazia de minha objetividade para o outro. Nem sequer posso conceber que efeitos terão meus gestos e atitudes, já que sempre serão retomados e fundamentados por uma liberdade que irá transcendê-los ("qui les dépassera") e só podem ter significação caso esta liberdade lhes confira uma. Assim, o 'sentido' de minhas expressões sempre me escapa (...)" (pág. 465, 1).
A partir daí, depreende-se que a terminologia sartriana é norteada pela idéia de que os sentidos, não sendo auto-evidentes, têm sua compreensão dada por uma consciência que extrapola as intenções do autor. A palavra não é, para ele, o mero reflexo de um ser que existisse por si próprio, mas, sim, um constructo, cujo significado é necessariamente dado pelo outro.
Levando-se essa idéia em consideração, algumas decisões teóricas implícitas no texto de Paulo Perdigão merecem ser comentadas. A começar pelo trecho acima citado, vale notar que o tradutor descarta o equivalente em português mais próximo da expressão francesa em proveito de termos com imbricadas conotações filosóficas: "transcender" para "dépasser", que bem poderia ser vertido para "ultrapassar"; "primordial" para "première", que poderia ser facilmente traduzido como "primeira".
Na introdução do texto (pág. 16), o leitor encontra uma oração de construção inextricável: "O fenômeno não indica, com altivez, o desprezo, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, absoluto". Neste trecho, Sartre quer simplesmente dizer que o fenômeno não deve ser entendido como referente da coisa em si absoluta, isto é, que sua noção de fenômeno não é a de algo que apontasse, "com desdém" ("par-dessus son épaule"), para um ser verdadeiro. Nessa passagem, a redação em português poderia ter evitado a incômoda impressão de que o "fenômeno indica o desprezo", o que não faz sentido algum.
Na segunda parte do livro (pág. 122), lê-se: "Não há, no Em-si, uma só parcela de ser que não seja sem distância com relação a si". Bem, aqui a busca da literalidade resulta numa sequência tão carregada de negações que faz com que o trecho pareça mais complicado do que é. Sartre quer dizer apenas que no "em-si" o ser é "pleno", isto é, oposto ao "para-si" que, enquanto consciência de si, encerra uma "fissura". Quer dizer, enfim, que não há, no "em-si", parte alguma do ser que se separasse de si próprio.
Esses são exemplos de problemas que podem atenuar a fluidez do texto original. Há termos cuja tradução implica decisões de caráter interpretativo, diante do qual o tradutor encontra soluções que, por si mesmas, não poderiam ser condenadas. Ainda assim, seria o caso de informar o leitor das justificativas dessas escolhas. No entanto, esse fica sem compreender por que razão é feita uma opção, como, por exemplo, a de grafar os termos "em-si" e "para-si" com maiúsculas. Se Sartre, ele próprio, emprega algumas vezes maiúscula (como na pág. 529 do original), conforme o tradutor observa em nota inicial, haveria maior fidelidade ao autor se a grafia em português se ativesse a reproduzir a forma original de cada uma das ocorrências.
Quanto à padronização, esta nem sempre é evidente: o verbo "dévoiler" é ora traduzido como "revelar" (pág. 16), ora como "desvelar" (pág. 551); "aparência" é utilizado tanto para "semblant" quanto para "apparence" (pág. 15). Tampouco as notas do tradutor indicam orientar-se por um critério claro: há notas que pretendem esclarecer o sentido de alguns conceitos que aparecem em língua estrangeira no texto original, mas que, frequentemente, não chegam a fazê-lo. É o caso, por exemplo, da nota explicativa (pág. 123) da noção husserliana "mit-machen", que o tradutor explicita sumariamente (tal como o faz a tradução inglesa) da seguinte maneira: "Em alemão, 'fazer parte de'±". No mesmo trecho, aparece o termo grego "epoché", que, curiosamente, não recebe nenhuma nota explicativa.
Vê-se, portanto, que a redação das notas não chega a auxiliar o iniciante e, todavia, não resulta em grande contribuição para o especialista.
O índice terminológico apresentado contém, por sua vez, alguns enigmas. Ora, por que a palavra "sursis" deveria ser traduzida por "em suspenso", já que há o exato equivalente em português? Além disso, cabe lembrar que o segundo volume da trilogia "Os Caminhos da Liberdade" carrega esse título -"Sursis"- em sua edição brasileira e, ao fazê-lo, tornou convencional essa versão para o português da expressão sartriana.
Outro exemplo se encontra na opção feita para a palavra "incomplétude", vertida para "caráter incompleto". Considerando-se, de um lado, os possíveis comprometimentos implicados na idéia de "caráter" e, de outro lado, o uso já estabelecido pela literatura de comentário da expressão "incompletude", esta opção mereceria ser justificada.
Com certeza, essa recente tradução em língua portuguesa de "O Ser e o Nada" deverá se constituir em referência necessária e, evidentemente, responderá à tarefa de divulgação da obra de Sartre, o que não é pouca coisa quando se tem em conta a reduzidíssima quantidade de traduções no mercado editorial brasileiro. Entretanto, ao que parece, a utilização dessa edição deve saber se prevenir para que as eventuais dificuldades de compreensão não sejam tomadas como inerentes ao texto original, evitando que a fascinação da terminologia existencialista ofusque a nitidez da letra do autor, pois Sartre "propunha-se tanto um estilo de vida como uma higiene de pensamento: é por isso que ele era fascinante" (2).
Notas
1. Paginação sempre referente à tradução de Paulo Perdigão. As edições de "O Ser e o Nada" consultadas foram: "L'Etre et le Néant", Paris, Gallimard, 1943; "Being and Nothingness", tradução de Hazel E. Barnes, Nova York, Gramercy Books, 1994; e "El Ser y la Nada", tradução de Juan Valmar, Buenos Aires, Losada, 1966.
2. G. Lébrun, "Sartre em Seu Tempo", in "Passeios ao Léu", SP, Brasiliense, 1983.

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