São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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A difícil vida sexual dos escritores ingleses

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Este livro não é novo (foi lançado em 1983 na Inglaterra), mas é uma grande novidade. A idéia é boa -uma análise do casamento a partir da vida de cinco casais da era vitoriana inglesa (1832-1901).
Pesquisando material biográfico como correspondências, arquivos de manuscritos e biografias, a professora de literatura Phyllis Rose fez uma devassa nos casamentos de cinco intelectuais ingleses famosos: os escritores Charles Dickens e George Eliot, o crítico e ensaísta John Ruskin, o filósofo e economista John Stuart Mill e o também crítico Thomas Carlyle.
A autora confessa que tinha objetivos feministas. Seu desejo foi o de "contar as histórias de alguns casamentos da maneira menos sentimental possível, dando atenção às alternâncias do poder entre um homem e uma mulher unidos". "(...) O casamento, por ser muitas vezes o contexto em que se desenrola o destino da mulher, sempre foi objeto do escrutínio feminino."
Mas esse objetivo em particular não limita o alcance da obra. Rose acaba fazendo uma verdadeira sociologia do casamento, numa época em que grassava o puritanismo, a repressão, a inteira submissão das relações à moral e às leis.
O resultado de sua pesquisa é apocalíptico e profético: das cinco uniões enfocadas, três não envolviam qualquer paixão, uma degenerou em um escândalo público e a única que foi feliz era a mais chocante, por não ter a sanção da Igreja ou do Estado.
São todos casamentos meio espetaculares, quer pelos escândalos de incompatibilidades e arranjos de fachada, quer pelo que tinham de original -no caso único, é bem verdade, da relação da escritora George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) com seu primeiro marido, o jornalista George Henry Lewes.
A importante escritora inglesa George Eliot (1819-1880), autora, entre outros, do genial romance "Middlemarch" (1871), tinha mais de 30 anos quando se apaixonou por George Lewes (cujo primeiro nome adotou, por achar mais fácil vender livros sob um nome masculino).
Considerada muito feia por sua família, tinha idéias radicais sobre como conduzir sua vida e tratar de sexo e amor. Eliot era o que se chamaria depois uma intelectual "livre-pensante", avançada para alguns e libertina para outros, mas que sofria por não encontrar um parceiro à sua altura.
Quando Eliot conheceu Lewes, mais velho, casado e pai de três filhos, ele já vivia uma situação inusitada dentro de seu próprio casamento: sua mulher era amante de seu sócio e melhor amigo, de quem tivera mais três filhos, todos vivendo sob o mesmo teto de Lewes, como se fossem filhos seus.
"Assumindo a linha racionalista mais elevada, Lewes recusava-se a ficar indignado com a infidelidade da mulher", Rose comenta. Não registrou queixa quando ela deu à luz os filhos de outro homem, o que poderia fazer, já que, aos olhos da lei, o homem tinha direito ao gozo exclusivo de sua esposa, do ponto de vista sexual.
Mas, desesperado com sua vida emocional, unido a uma mulher de quem não podia esperar amor nem conforto, não vacilou em largar tudo pelo amor de Mary Ann Evans. A união foi um escândalo. Eliot e Lewes fugiram para a Alemanha e viveram juntos sem serem legalmente casados por 24 anos, até a morte dele.
Foi Lewes o incentivador responsável pela consolidação de Eliot como uma das maiores escritoras do século 19. Eles formaram o chamado "casal literário" inglês, "um produto doméstico peculiar da Inglaterra, especialmente útil, sem dúvida, num país com invernos rigorosos. Diante do calor do fogo na hora do chá, podemos ver esses homens e mulheres de alta sensibilidade apegados uns aos outros, tocando-se com os dedos manchados de tinta. E temos razão para invejar a compatibilidade intelectual existente entre a Srta. Evans e o Sr. Lewes. Caminhavam juntos, escreviam juntos, liam Homero e aprendiam línguas juntos".
Depois da morte de Lewes, uma sexagenária George Eliot se casaria pela segunda vez com um homem 20 anos mais novo do que ela.
Outro casamento motivo de escândalo, mas por razões opostas, foi o do escritor Charles Dickens (1812-1870). No início, seu casamento com a pacata Catherine Hogarth era um mar de rosas: satisfazia as necessidades de sexo e companhia do produtivo Dickens, e alegrava-lhe o lar com os filhos.
Para quem considera sem valor ou apenas "comerciais" as passagens dos primeiros romances do "sombrio e atormentado" Dickens, a autora adverte:
"Dickens valorizava muito -talvez demais- o tipo de família em que o pai trabalhava e era o provedor, a mãe cuidava da casa e das crianças, e a estas só restava se divertir. Admirava a vida familiar. Ela o deixava feliz. Não havia qualquer hipocrisia em seu elogio da domesticidade nos primeiros romances". "(...) Ele e Catherine eram tão dedicados um ao outro quanto podia ser um jovem casal que, junto, criasse uma vida melhor do que as que tiveram na infância (...)."
O inferno começou quando Dickens atingiu a meia-idade. Por volta dos 40 anos, o casamento -e a infinita sequência de filhos, mais de dez, que não paravam de nascer- virou um inferno para ele.
Catherine já não lhe servia de companhia nem intelectual nem física. Um fosso se abriu entre eles, até o casal se separar.
Foi por ocasião do divórcio que Dickens se revelou um canalha com a mulher, a quem considerava "preguiçosa e desprovida de atrativos". Não lhe deixou nada, além de uma módica pensão. Tirou-lhe inclusive os filhos, cuja guarda, na época, era do pai.
Não bastasse isso, o atormentado autor de "David Copperfield" resolveu explicar ao público os motivos do divórcio, destruindo Catherine em declarações publicadas em vários jornais e revistas.
Mais dramáticos foram casamentos como os de Ruskin (1819-1900) e Carlyle (1795-1881). A misoginia de John Ruskin ficou patente logo na noite de lua-de-mel. Não tinha visto uma única mulher nua até então, achou terrivelmente feio o que viu e nunca conseguiu fazer sexo com ela. Passado algum tempo, e desconfiando que algo estava errado, a virgem Effie Ruskin não teve dúvida: arranjou um amante e pediu divórcio, alegando a impotência do marido.
O casamento dos Ruskins foi anulado por um tribunal eclesiástico -coisa raríssima para uma Inglaterra vitoriana-, e a sentença menciona a "impotência incurável" de Ruskin. Conta-se que, anos depois, John Ruskin conheceu Rose La Touche, por quem se apaixonou: ele tinha 39 anos, e ela, 9!
Outro possível homossexual desavisado foi Thomas Carlyle. Dizia-se que o casamento dos Carlyle não era de verdade, tendo o companheirismo como única finalidade. Phyllis Rose conclui: "É provável que Thomas Carlyle também fosse impotente e que seu casamento, como o de Ruskin, também nunca tenha sido consumado".
É de arrepiar essa testamentada biografia do fracasso do casamento, ou dos conhecidos "pactos" de casamento, instituição bem definida, por Bernard Shaw, como um grave erro de consciência: "A confusão do casamento com a moral fez mais para destruir a consciência da raça humana do que qualquer outro erro singular".

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