São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A grandeza no pequeno

LUIZ COSTA LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Materialmente, "O Cacto e as Ruínas - A Poesia entre Outras Artes", de Davi Arrigucci Jr. (Ed. Duas Cidades, 128 págs., R$ 22,00), é um pequeno livro. Pela maneira de abordar seu tema, um livro considerável. Pois é só na aparência ou em detalhes que seu tratamento é convencional: a leitura de dois poemas, "O Cacto", de Bandeira, e "As Ruínas de Selinunte", de Murilo Mendes. A auto-imposta restrição é louvável: se, a partir do modernismo, temos formado um rico acervo poético (o que não é válido para nossa prosa), em troca permanece pobre nossa crítica de poesia. Obrigando-se a falar de precisos objetos, Arrigucci se contrapõe a apreciações vagas, gerais e deslastradas. Sigamos seu andamento.
Bandeira "soube inventar, com a 'modesta grandeza' de seu estilo humilde, uma forma poética admiravelmente simples". Que supõe tal humildade? Embora próxima do "sermo humilis" celebrizado por Auerbach, com ele não se confunde. No caso específico de Bandeira e preciso de "O Cacto", implica a despersonalização da voz lírica. "A linguagem objetiva e seca parece evitar, de fato, toda interferência subjetiva até o juízo final, quando se opina sobre o objeto". A esse primeiro traço se incorpora o sentido da mistura, pelo qual "elementos baixos" assumem "o caráter problemático, sério e elevado". Assim, o cacto, desprovido "de qualquer elevação", é impulsionado para o patético elevado e para o trágico", ao mesmo tempo que, elemento da natureza, serve de ponta que lança na cena do humano. À despersonalização e à mistura de formas e planos ainda se incorporam a pobreza intencional -o tom, digamos, anti-hugoano- e a deformação, dada por "o volume gigantesco do cacto".
Por essa última, Bandeira se aproxima do expressionismo de Lasar Segall, que, em sua fase brasileira, observa Arrigucci com argúcia, associara "a imagem do cacto à representação do sofrimento e da miséria". Aí, porém, não se encerra a correspondência com a expressão pictórica. O autor tem ainda o mérito de saber mostrar a ressonância da lição cubista no poema. É de acordo com essa que "procede a uma espécie de investigação do objeto (...) visto (...) como forma isolada no espaço". Tal aproximação com a desconexão cubista, entretanto, não impede Arrigucci de compreender seu limite. "A tensão plástica, visual e escultórica, da imagem paralisada é (...) ainda 'literária', pois ainda dependente do 'movimento narrativo'±".
Aqui caberia um rápido reparo: a compreensão desse limite não seria bastante significativo para que, então, merecesse tratamento mais detalhado? A manutenção do "movimento narrativo" não serviria de índice para o tipo de rumo do modernismo bandeiriano? Arrigucci, contudo, prefere suspender a observação e continuar a análise verso a verso. Dentro dela, destaca-se o exame das figuras de Laocoonte e Ugolino. Elas servirão para que o autor concretize um veio importante de sua interpretação. A comparação do modesto cacto natural com aquelas figuras de clássica evocação permitirá a passagem do "reino da natureza" para o "trágico da condição humana", ou seja, servirá de base para a alegoria configurada pelo poema. Suas dimensões plenas, contudo, ainda supõem o deslocamento operado pela segunda estrofe, em que o "plano arquetípico em que se precipitava a imagem" dá lugar a "o plano dos eventos cotidianos de uma cidade de província", provocando o deslocamento do modo de apresentação: em vez do alegórico-abstrato, a preferência concedida às "formas rebaixadas do realismo".
Chega-se à segunda parte do ensaio. Elegendo um poema de Murilo Mendes, ou seja, um poeta de estirpe bem diversa de Bandeira, Arrigucci mostra um virtuosismo considerável. O que não o impede de estabelecer certa convergência entre seus dois objetos -e isso prova que, além de virtuosismo, estamos em presença de um estilo crítico. Sua fisionomia já se esboça na busca de uma correspondência pictórica. Agora, o onirismo de Chagall substitui o expressionismo de Segall, e o surrealismo em geral, a lição cubista. Um Chagall "à moda de casa" e um surrealismo menos estranhador que o parisiense, porquanto praticado de dentro de uma sociedade "onde a norma burguesa nunca assentou de todo".
O estilo crítico referido torna-se mais nítido por uma segunda aproximação entre os dois poemas. Nas duas estrofes de ambos, opera-se um deslocamento. Embora sejam eles bastante diversos -em Bandeira, do narrativo de uma cena "sublime" para o prosaico cotidiano, em Murilo, de uma "espécie de pictograma" da primeira estrofe para o desdobramento conceitual da segunda-, o final de ambos assume idêntica responsabilidade: nomear o sentido de toda a cena. Se o que chamamos "estilo crítico" até agora dependeu de insinuar correspondências, em troca tem aqui sua prova de fogo: revelar a singularidade de cada tratamento. Ele o alcança ao ressaltar como propriedade muriliana geral a prática da "discordia concors". Se essa observação já estava incorporada ao acervo interpretativo do poeta mineiro, em troca parece-me da lavra de Arrigucci a anotação da tensão entre verso e frase, a impossibilidade de a frase completar-se no verso que a inicia.
Um e outro traço se atualizam em "As Ruínas de Selinunte". É, assim, um momento alto -talvez o mais alto- da leitura aqui resenhada a observação da tensão entre verticalidade e horizontalidade. Se a verticalidade se atualiza pela precipitação das ruínas, a horizontalidade se mostra em seu tombar sobre o mar siciliano. Mas dizê-lo ainda seria pouco. A partir de seu ponto de queda, o poema reencena o movimento das ruínas, em "espiral agora ascendente", que, em vez de retornar a seu ponto de partida, vai além e atinge o deus. Através dessa ascensão reconstitutiva das ruínas, recompõe-se o antigo teatro, com ele o antigo ritual dionisíaco a que servira e, assim, a cena da divindade a que originariamente o teatro grego estivera enlaçado.
Por meio, pois, desse tenso dinamismo, a visão das ruínas repropõe a cena religioso-teatral originária e localiza a tragédia em seu próprio momento de configuração. Aqui, acrescentamos, já não há a manutenção de um modo narrativo a priori literário senão que uma nova dinâmica narrativa que, só a posteriori, receberá aquele reconhecimento, isto é, depois de captar-se seu sentido de "poiesis". Aí está um dos maiores méritos de Arrigucci: antes de sua análise, essa captação seria menos viável.
Guardamos para o final o que não caberia no acompanhamento das análises particulares. A divergência deste resenhador quanto a "O Cacto e as Ruínas" se prende a elementos de seu arcabouço teórico. Em um dos momentos em que Arrigucci se permite extrapolar os objetos singulares que escolheu, escreve, a propósito de "O Cacto", que ele suscita "a empatia que está na base da recepção e da fruição das obras de arte, como não se cansam de insistir os teóricos (...)". Apesar da aludida infatigabilidade dos teóricos, meto minha colher torta. Lembro um exemplo paradigmático rebelde: Kafka.
Como seus conhecedores deverão saber, a composição de um Joseph K é de tal ordem que a empatia do leitor (por suposto, burguês e ocidental) o impede de compreender a crítica a seus próprios valores que traz à tona a conduta do personagem. A "identificação empática" age como pressuposto para... a incompreensão da obra. Mais do que uma exceção, o exemplo de Kafka é aqui trazido como amostra de como se poderia desenvolver, em geral, o limite da empatia e, por desenvolvimento impossível de ser aqui cumprido, o limite acima aludido de Bandeira. O reparo, contudo, não diminui o mérito de "O Cacto e as Ruínas".

Texto Anterior: A liberdade de inventar o futuro
Próximo Texto: Baudelaire reabilitado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.