São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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A liberdade de inventar o futuro

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há muitos anos (hoje, talvez um pouco menos do que há 20 anos, seja como for, ainda nitidamente) a cena filosófica oficial está dividida entre "analíticos" (anglo-saxônicos) e "continentais" (europeus). Claro, a divisão é imprecisa e o par de opostos é desconforme: "analíticos" remete, de fato, a uma escola filosófica precisa, a filosofia analítica, enquanto "continentais" remete a uma determinação territorial (o continente europeu). Outros notaram que se trata de uma "categorização insensata, que aproxima determinações heterogêneas, não pertencentes à mesma família conceitual: é como distinguir os automóveis em 'japoneses' e 'de tração anterior' ".
Apesar da imprecisão, a distinção continua atuante e eficaz, no sentido de separar os filósofos que abordam o campo linguístico dos que se aplicam aos problemas da narração do ser; a analítica da verdade da ontologia da atualidade. Ao mesmo tempo, a comunidade contraditória das duas linhas de pensamento, ao definir a cena, exclui desta todas as posições que não se prestam a este jogo. O caráter normativo e exclusivo desta definição da cena filosófica pressupõe, portanto, que as exceções não consigam ser determinantes.
As exceções e o esquema
Esta distinção sempre foi, para mim, indigesta, não só por sua imprecisão descritiva, mas porque sempre me pareceu factualmente falsa. Vivendo no mundo dos filósofos, frequentemente tive a impressão de que as exceções fossem mais importantes do que a capacidade de compreensão do esquema. Como classificar um autor como Gilles Deleuze, que atravessava, sem hesitações, o terreno que se estende entre os "mil platôs" da narração do ser e "diferença e repetição" no modelo da verdade?
Ou então, em sentido inverso, como classificar Stanley Cavell, que, no mesmo momento em que, em "Claim of Reason", escava (à maneira hermenêutica) a tradição emersoniana da metafísica americana, realiza exatamente o melhor do ensinamento de Wittgenstein? Dou estes dois exemplos, mas poderia dar outros cem: Saul Kripke, em relação ao lado "analítico", Jacques Derrida, em relação ao lado "continental", ambos irredutíveis ao "lado" em que operam etc. etc. Por que, então, o modelo de classificação "analítico/continental", apesar da extrema incapacidade de abrangência que mostra, é mantido, defendido e reproposto? De onde vem, e por que esta obstinação?
Enfim, houve quem, com o objetivo de revivificar a polarização paradigmática da cena filosófica, tentou lhe atribuir uma dignidade forte, os "analíticos" representariam a tradição lógico-epistemológica do hebraísmo, os "continentais" a tradição cristã da narração. Duas dimensões diferentes, mas complementares, na genealogia do moderno (e/ou pós-moderno) -argumentam Rorty e Vattimo ao propor esta interpretação-, dimensões que certamente se articulam, mas que, no fundo, representam dois "Ideal-typus" irredutíveis.
Infelizmente, estes argumentos -quando não são decididamente desconexos (já teve algum sentido falar, fora de determinações precisas e historicamente coativas, de "filosofia cristã" e, a fortiori, de "filosofia hebraica"?)- são míticos, mitigadores e confusionais. Parecem-me uma reedição, desvigorada e um tanto embolorada, da "ação convergente" musiliana... Não, realmente, nem Rorty nem Vattimo se assemelham à vaga e apaixonada Diotima do espírito que Musil construiu!
Mas, então, a quem serve esta definição e divisão da cena filosófica? Francamente, começo a pensar que já não sirva para ninguém e para nada. Talvez não passe de uma má lembrança... Digamos melhor: nos últimos 20 anos, "analíticos" e "continentais" tornaram-se, em filosofia, as tapeçarias da cena. A realidade encarregou-se de misturar as cartas. Quando Umberto Eco (a outro propósito) separava "integrados" de "apocalípticos", insistindo ironicamente sobre a complementaridade do comportamento literário e ético de uns e de outros, adiantava a crítica das novas confusões.
Fátua elegância
Tentemos, então, mudar completamente de ponto de vista e assumir as exceções no centro de nossa atenção. Veremos, então, que o terreno hoje vencedor da proposta filosófica é um ponto de vista que não é, em nenhum caso, submisso à dogmática metodológica das duas posições paradigmáticas: ao contrário, contra a fátua elegância da analítica da linguagem, assim como contra a pobre e mísera fatalidade do ser (isto é, as concepções do fim da história), toma as coisas pelo que elas são, e a vida como vida; e os conceitos como nomes comuns, e o saber como construção, e o político como constituição. Aquela filosofia francesa contemporânea, que vai de Foucault a Deleuze, representa bem esta perspectiva.
Terraço da filosofia
Não um "terceiro caminho", não uma "nova costura", não algo que do terraço da história da filosofia fala a súditos: mas a crítica, aquela crítica que vive na realidade, aquela filosofia que, socraticamente, atravessa as praças, aquele campo de imanência que a razão escava ininterruptamente -sem a pretensão de que as metodologias antecipem a verdade e a ordem da cidade, mas aceitando, antes, construir aquela e esta.
Para representar esta função teórica, Jean Genet (oh, que proximidade com Deleuze e Foucault!) assumia a figura do rebelde palestinense dos anos 70, nômade e combatente, nem cristão nem muçulmano, mas leigo, pagão, "idiota", no sentido clássico da palavra, ou seja, despido de qualquer pressuposto e capaz do dom gratuito. Ele rompe com toda a preconstituição do real, radicalmente...
Nós também, para fazermos o pensamento corresponder, com liberdade, ao real, temos de cancelar todo o pressuposto ideológico, ou profissional, ou editorial, ou disciplinar da atividade filosófica; e bater toda a máfia que, apoiando-se em fenecidas analíticas da verdade e ontologias da atualidade, pretenda conservar velhas cercas (ou construir novas) contra a liberdade de inventar o futuro. Porque, isto deve ficar bem claro, e talvez valha a pena insistir mais uma vez, "analíticos" e "continentais" (mesmo que dividam entre si todas as universidades do mundo) não passam de peripatéticos morrediços.

Tradução de Roberta Barni.

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