São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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Literatura e gosto médio

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que é feito do caro leitor ao longo da história da grande literatura? Que papel reservam ao distinto público os autores no centro do centro do cânone? Para quem escrevem o que escrevem? E quem os lê?
Montaigne, pai dos escritores modernos, primeiro dos "écrivains", abre um diálogo com seus contemporâneos. Diálogo em cujo aperfeiçoamento toma a providência de escrever como se fala e de falar ao pé do ouvido. Estamos no período renascentista, vale dizer, em plena difusão do livro. Período de importantes mutações, quando, a um número maior de leitores do que aqueles restritos até aqui, na esfera da Igreja, aos documentos da religião, propõem-se agora, impressos, os textos clássicos.
É nesse momento de reverência não mais ao Livro, mas às lições dos antigos, que um livro, expressamente dirigido ao leitor, em tom confidencial, se escreve. Um livro dentre todos especial porque funda um gênero, próprio para acolher a instabilidade do autor e dos tempos. Um livro tão perturbador -em movimento, para lembrar Starobinski-, que a linhagem logo se interromperá, no classicismo, cioso de equilíbrio. Livro que, na observação da inconstância de tudo, faz tábula rasa da via teológica e dos mestres do passado, que sobem então às cabeças, na expressão de André Gide em seu "Montaigne". A esse livro, profano, confidencial, em primeira pessoa, de mergulho no imaginário e de saltos temáticos, costuma-se associar, de um lado, a invenção da subjetividade moderna (envolvida também, no mesmo momento, no monólogo shakespeareano), de outro, um novo tipo de contato com o leitor de novo tipo, "honnête homme", cultor dos gregos e dos latinos, formado nos novos velhos tempos. Trata-se dos "Ensaios".
Para escrevê-lo, Montaigne, refugiado nos altos do castelo da família, toma suas distâncias. Não do público, de que não se pode ainda falar nesse momento em que ele, justamente, está se constituindo, mas da vida pública. No caso, da política, do cargo de Conselheiro no Parlamento de Bordeaux. Os "Ensaios" têm mais isto de notável, que, inaugurando uma conversa direta com o leitor, convocado desde a abertura, numa nota introdutória, requisitam, da mesma feita, um "locus" especial, ao abrigo do exterior.
Um novo gênero e um lugar ao abrigo. Uma torre de marfim, em suma. Deste ponto isolado -mas não desolado, já que da torre, ao lado de uma vasta biblioteca, repleta de obras de história, filosofia e poesia latina, se divisa melhor a mascarada do mundo- o primeiro dos homens de letras conversa, por livro interposto, em estilo solto, com os de sua casta, os leitores de então. A desolação está por vir.
A "pintura" de si mesmo a que o autor dos "Ensaios" quer chegar, confiando-nos que não logra realizar seu intento, verte-se, de fato, em prosa coloquial, fluente, digressiva. Um registro inédito, que não evita nem a língua vulgar, dialetal (o dialeto gascão), nem temas do repertório baixo, que a lei aristotélica da separação dos gêneros teria descartado. Para além dos elevados assuntos dos moralistas clássicos, os "Ensaios" tratam das doenças do corpo físico, do sono, do sonho, dos enganos do autor, de sua dieta, de sua maneira de atravessar os dias... O intimismo desses escritos explicando-se principalmente pelo fato de continuarem um diálogo interrompido com um interlocutor ideal, muito cedo perdido, o amigo La Boétie. Os "Ensaios" projetam-se, inicialmente, em forma de cartas ao autor do "Discurso sobre a Servidão Voluntária".
Que tirar dessa rápida volta no tempo? A correspondência, o contato fino, no nascedouro, entre literato e leitores, postos na posição de parceiros, em meio ao luto do parceiro. De cujos trabalhos, aliás, Montaigne se faz o editor, levando-os a público, como um dom que se divide. Ora, essa corrente é rompida na modernidade avançada, sobretudo em seus nichos de excelência, em que se achaca o leitor, agora não mais meritório.
Lembremos os pré-românticos franceses e os episódios de exílio ou encarceramento que acompanham, muitas vezes, a publicação de seus livros, muitas vezes clandestinos. Lembremos o precursor do escândalo surrealista que é Sade, proibido de aparecer até meados do nosso século, quando uma primeira reunião da obra, feita pelo editor Jean-Jacques Pauvert, inflama um último processo contra os textos malditos. Se os escritores das Luzes, corruptores e, por isso mesmo, casos de polícia, já agridem com seus livros, o conluio encetado por Montaigne vai atingir, na sequência, um auge de desgaste.
Baudelaire, antes de pôr a bomba que escreve nas mãos do leitor, oferece, como se sabe, suas "Flores do Mal" a Théophile Gautier: "Au poète impéccable", diz a célebre dedicatória do volume. Trata-se, em ambas as oferendas, de verdadeiras facas de dois gumes. Onde surpreender, nas linhas e entrelinhas, o repúdio dos convocados.
Em seu belo livro de ensaios "Le Vol du Vampire" (1981), Michel Tournier vê, com razão, no oferecimento a Gautier, um sugestivo lapso, mais que uma ambiguidade. Na boca do mais pecaminoso dos poetas, nota ele, render homenagens ao mestre "impecável" -sem pecado!- é para ser ouvido como um desdito. A famosa dedicatória das "Flores" endossa a dissidência parnasiana -e Baudelaire precisa demarcar-se dos românticos franceses para ser o melhor deles e indigita, como sem querer, a frigidez do autor dos "Esmaltes e Camafeus". Na companhia do qual o suposto discípulo está, no fundo, só.
Também ao "leitor hipócrita" vão enviados os poemas que terminam de pôr cobro às relações possíveis entre a grande poesia moderna e o distinto público. E também aí o efeito é perverso. Pois aí também cada palavra do poeta -que define, noutra parte, o seu livro como um "miserável dicionário do crime e da melancolia" e se gaba de ter posto nele toda a sua raiva (Flaubert dirá o mesmo do "Dictionnaire des Idées Reçues")- é feita para indispô-lo com o leitor comum. Ou os leitores comuns -já plenamente representantes das classes consumidoras dos folhetins, as classes laboriosas.
Que comunhão poderia haver entre tais leitores e o poeta, ocupado, quando não está blasfemando, em flanar? Que mais, senão o tédio, que, no caso do "flâneur", se torna poeticamente produtivo, poderia aproximar o dândi do seu oposto simétrico, que é, nas próprias palavras de Baudelaire, o imbecil das ruas? Enforcado na própria gravata, aprisionado nas roupas, reagindo em grupo, como o cavalheiro do quarto poema do "Spleen de Paris" ("Un Plaisant", "O Engraçadinho")?
A revolução romântica vai radicalizar a solidão montaigneana, vai separar as duas partes que Montaigne, de seu mirante isolado com vista para o rio Dordogne e o mundo, pôs em delicada relação.
Sinal dessas disposições de autocentramento é a estilização baudelaireana, inspirada em Poe, como a veia macabra, e a invectiva do poeta não apenas contra o homem médio, mas contra o espírito francês, inclusive literário, visado em cheio no ensaio "Da Essência do Riso". Nele, defendendo, contra a representação razoável, a caricatura, diz de seus compatriotas, a começar por Molière, que eles não alcançam o cômico absoluto, quer dizer, a demolição absoluta. Imbuído de tal espírito, o público é para ser tratado como o "totó" do poema em prosa "O Cão e o Frasco", do "Spleen": para que lhe acenar com perfume se ele gosta de sujeira ("ordures") cuidadosamente escolhida?
Circunscreve-se aqui, em meio a processo judicial por atentado ao pudor e censura dos escritos, um novo espaço literário, cuja abjeção repudia o espírito do tempo, e por ele é repudiada. Conflito não apenas entre autor e público, literatura e leitor, mas, em horizonte amplo, literatura e sociedade, ele é o alvo da "Conferência sobre Lírica e Sociedade", de Adorno (encontrável no volume dos "Pensadores", da Abril, dedicado aos frankfurtianos), cuja tese central é a de que as grandes obras espelham e negam o seu tempo. Não longe disso fica a argumentação de Valéry, no sentido de que é o desprezo pelo sufrágio do público, e da crítica como seu prolongamento, que define o grande simbolismo francês como movimento ("Variété: Existence du Symbolisme"). As soluções estéticas sendo em tudo distintas em Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Laforgue..., escreve Valéry, nesse divórcio eles se encontram, repelindo qualquer pacto com o gosto vulgar e suas vantagens.
As produções da modernidade tanto mais incluem o receptor quanto se apóiam numa função social -para usar esta nomenclatura- da literatura. Ou quanto defendem uma literatura empenhada, de compromisso com a vida nacional. Assim com os romantismos nacionalistas, com os realismos e naturalismos, assim com a "Escola de Meudon", de Zola. Escola no interior da qual se forja, entretanto, voltando em parte as coisas atrás, como se a modernidade perseverasse em si mesma, um Huysmans! Vale dizer, um decadentista à moda de Oscar Wilde, para quem só o simbólico é real, e só com outro decadente, quer dizer, outro estilista, se pode comerciar.
Borges sustentará, à sua maneira, a mesma coisa. O leitor ideal borgeano não reage a um autor ou a uma obra, nem entra através da obra em relação com um autor e o seu mundo -só havendo mundo, aqui, dos livros para dentro-, mas está enredado na literatura. De tal modo que, procurando, por exemplo, precursores de Kafka na história da literatura, tudo o que ele encontra em suas leituras são efeitos kafkianos nos predecessores. O leitor refaz seus autores e, assim, a história da literatura. História em que, por sua vez, são as obras que reagem entre si e selecionam as obras, inclusive -e por que não?- sob influência reversa. História infinita e circular -inútil dizer, em se tratando de Borges- de livros dentro dos livros. Senão de bibliotecas.
Este leitor é muito mais complicado que o simples recepcionador (mas, para atinar com ele, é preciso gostar de literatura: frequentar a grande Biblioteca).
Tudo isso para problematizar a tríade autor-obra-público, ou o binômio literatura-leitor, ou esta equação de duas incógnitas, como a chamou Roman Jakobson: literatura e sociedade. Sequências talvez por demais lineares frente aos eventos literários. E para reencaminhar a suspeita -finamente avançada por Haroldo de Campos neste opúsculo de síntese e percuciência: "O Sequestro do Barroco - O Caso Gregório de Mattos" (1989), que se aproxima dos dez anos de existência debaixo de um silêncio compreensível- de que a valorização do público leitor reverencia o gosto médio, as acomodações de poucas letras. Ou aquela literatura sobre a qual nos diz Baudelaire que é "ordure".

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