São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 1997
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A reeleição e a juba do leão

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

As evidências de corrupção na votação da emenda da reeleição desencadearam uma onda nacional de críticas. Generalizou-se a suspeita, e até a convicção, de que o governo usou métodos impublicáveis para fazer passar a reeleição.
O barulho em torno do assunto revela profunda incompreensão e falta do mais elementar senso de justiça. Afinal, o presidente da República opera dentro dos limites do possível. A sua utopia, recorde-se, é a "utopia possível". Nunca prometeu mais do que isso.
De mais a mais, há que se considerar o seguinte: não é humanamente razoável esperar que alguém abra mão da possibilidade de se reeleger presidente, governador ou prefeito e não faça o que estiver a seu alcance para concretizar essa possibilidade.
No tempo do Nélson Rodrigues havia uma anedota célebre sobre um português que se tornou o principal credor de um circo. Não sei se vocês a conhecem. Se não conhecem, vamos lá.
O circo faliu, e o dono chamou o português. "Não tenho dinheiro, mas leva o leão", disse. E sai o português com o leão. O luso só não entendeu a juba. Achou que a cabeleira era excessiva e passou a máquina zero no bicho.
Imediatamente, o leão passou a ser olhado como um cachorro amarelo. No dia seguinte, em vez de rugir, latia.
Pois bem. Apeado da Presidência, Fernando Henrique Cardoso seria um pouco como esse leão sem juba. E a insistência em deplorar as suas pretensões continuístas e os meios utilizados para realizá-las equivalem à obtusidade do luso da anedota.
O poder tem vantagens pouco divulgadas e pouco compreendidas. Evidentemente, não me refiro, aqui, à corrupção pura e simples. Esse atrativo, embora comum, não é o único e nem sempre é o principal.
Permita-me, caro leitor, relatar uma experiência pessoal. Nos idos de 1985, cheguei a Brasília na condição de integrante da equipe do novo ministro do Planejamento, o João Sayad. A equipe que saía era a do todo-poderoso Delfim Netto.
Vocês não fazem idéia do plantel de secretárias e assistentes que herdamos. Era um espetáculo e um desfile permanente. Naturalmente, era grande o risco de perder o rumo naquele "Venusberg" da Esplanada dos Ministérios.
E não era só isso. Qualquer declaração nossa, por mais trivial, virava motivo para notícia e até manchete. As vendas dos nossos livros aumentavam. Cada um de nós descobria em si qualidades insuspeitadas. A nossa auto-imagem melhorava de 15 em 15 minutos.
Se é assim com meros assessores econômicos, imaginem só o que representa o poder para um prefeito, para um governador e, sobretudo, para o presidente da República. Ah, é a glória! Não há quem resista às delícias do poder nesses níveis.
O sujeito não demora a se julgar um iluminado, e até um predestinado. Com auxílio da habitual corte de bajuladores, logo começa a se considerar insubstituível. O fim do mandato toma ares de uma perda irreparável para o país. Passar o cargo se afigura, mais e mais, como um erro monstruoso.
O leitor, que é, às vezes, de uma ingenuidade à toda prova, poderá estar se perguntando: "E o Brasil nisso tudo?" Ah, esse é outro assunto, totalmente diferente. Em tudo isso que está acontecendo, só há uma coisa que realmente impressiona: a total e completa solidão do Brasil.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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