São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 1997
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É melhor esquecer Chopin tocado por Thibaudet

RTHUR NESTROVSKI

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já aconteceu com quase todo mundo: a frustração de encontrar uma grande modelo, ou grande atriz ao vivo, e descobrir a diferença. O equivalente musical é a distância que existe entre as gravações e uma interpretação ao vivo. Foi o caso do concerto do pianista Jean-Yves Thibaudet, no Cultura Artística, na segunda-feira.
O que era exuberante nos discos soou bombástico no palco; o que era encantatório, desencantado. Nos últimos anos, tem-se visto um verdadeiro renascimento da interpretação de Chopin. A mistura de gêneros (música de salão e contraponto bachiano, ópera lírica e danças populares), subordinada a uma capacidade rara de interiorização -em que tudo é absorvido para um outro mundo, tudo se torna "noturno" e pessoal-, faz de Chopin um compositor por excelência do nosso tempo, tanto ou mais do que do seu.
Depois desse Chopin lírico, pouco lírico, veio o Chopin virtuosístico dos "Estudos". Thibaudet toca com fluência e garra, corajosamente à beira de um abismo de dedos. Mas o virtuosismo de Chopin está para além do atletismo; há um quase desprezo de sua parte pela façanha digital. A dificuldade é um rito de passagem, até outra espécie mais alta de inteligência. Os "Estudos" soaram chochos, secos.
É um Chopin um tanto russo, que faz pensar em Mussorgski; no mínimo, uma interpretação de que a gente se lembra com interesse. O resto ficou no padrão de um Chopin de alto contraste: grandes massas de som e melodias descarnadas.
Não tendo que escrever uma resenha, o melhor teria sido ir embora no intervalo. Mas Schumann é sempre um bom motivo para ficar, os "Estudos Sinfônicos" são tão pouco tocados, a esperança é a última que morre etc. -morreu ao som tonitruante dessas explosões de Thibaudet e do mesmo antilirismo sentimental.
Ele toca como se o mundo fosse uma camada mínima de vidro, sob a qual se vislumbram maravilhas e horrores passionais. Ao mesmo tempo, resiste a toda forma de doçura ou simples entrega. O resultado poderia ser o bastante para mudar uma vida. Mas acaba soando caricato, exagerado, insistente.
Curiosamente, soa frio também. É um pianista de efeito; mas não é, como diria Henry James, "the real thing". Toda uma geração de bons músicos -de Thibaudet a Cecilia Bartoli, ou a violinista-revelação Leila Josefowicz- parece condenada a esses contrastes de cores e a uma linguagem mais crua, amparada em avanços "tecnológicos" da interpretação e uma boa dose de extravagância pessoal também.
O resultado é espetacular, mas enjoativo, um pouco como o traje de Thibaudet: fraque de botões dourados, colete bordado, sapato de feltro e meias vermelhas. Faria as delícias do barão de Charlus de Proust, mas para nós, que não temos essa grandeza, fica mesmo à beira do ridículo.
Quem sabe hoje à noite, num programa só de Debussy e Ravel, as coisas sejam diferentes. Da segunda-feira, a gente já se esqueceu, ou está tentando. Um programa tão bom, e um concerto, francamente, tão ruim.

Concerto: Jean-Yves Thibaudet
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tels. 011/256-0223 e 011/257-3261)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 25 a R$ 50 (R$ 10 para estudantes, meia hora antes do concerto)

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