São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 1997
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Numa fria

MARINA SILVA; JORGE VIANA

Por vias tortas, o Acre presta um serviço ao Brasil: escancarar as entranhas da política nacional
MARINA SILVA e
JORGE VIANA
Numa tarde do ano de 1986, acompanhamos Chico Mendes num passeio pelas ruas de Rio Branco, visitando algumas pessoas, na tentativa de propagar sua candidatura a deputado estadual. Chico encontrou um velho amigo de Xapuri, que lhe disse: "Ouvi dizer que você agora vai ser deputado". Chico simplesmente respondeu: "Pois é, companheiro, me meteram nessa fria".
Tivemos de repreendê-lo. Com um discurso daqueles, não ganharia o voto de ninguém. Mas compreendíamos -e hoje ainda mais- que ele estava apenas demonstrando o quanto era difícil fazer política com seriedade no Acre, enfrentando corruptos e corruptores com seus esquemas milionários, esmolando espaço numa imprensa amordaçada. Sem falar das ameaças e violências que tantas vezes denunciamos.
O triste espetáculo encenado por deputados federais do Acre mostra o que tivemos que enfrentar para conquistar o que hoje temos: vereadores, deputados estaduais, prefeitos e até uma cadeira no Senado. Os Camelis e Amazoninos são contestados por um forte movimento popular, que busca o caminho da democracia e do desenvolvimento sustentável para a região.
Mas os deputados mostraram algo mais: que o fisiologismo não domina apenas o "faroeste" da Amazônia, e os grandes esquemas de corrupção ainda estão intactos em todo o país. Esse é o serviço que, por vias tortas, o Acre acaba prestando ao Brasil: escancarar as entranhas da política nacional, mostrar o quanto ela está podre, revelar a hipocrisia que a domina.
Estamos cansados de denunciar. Primeiro, as contas fantasmas, que não foram inventadas por PC Farias, mas por Flávio Nogueira, durante o governo Flaviano Melo no Acre. Depois, apareceu outra fita famosa, em que Rogério Magri reconhece ter recebido propina para liberar as verbas do canal da Maternidade, um dos muitos escândalos que levaram Collor ao impeachment.
Em seguida, ocorreu o assassinato do governador Edmundo Pinto, num hotel em São Paulo, um dia antes de depor na CPI do FGTS. Sobre o atual governador, Orleir Cameli, pesam graves denúncias e vários processos na Justiça.
Por isso, nada do que ocorre nos espanta. O que nos espanta é o "espanto" do Brasil. Então ninguém sabia de nada? E a lista dos deputados do PPB paulista? Afinal, como bem perguntaram os jornalistas, se o voto de um deputado do Acre custa R$ 200 mil, quanto está custando o voto de um deputado de São Paulo? Quem estiver limpo, que atire a primeira pedra! Dois deputados do Acre já renunciaram. E os outros?
Outra coisa digna de espanto é a opção que o governo do professor Fernando Henrique Cardoso fez pela política fisiológica. Os inteligentes "neogovernistas" poderiam dizer que esse é o preço que se paga para governar o Brasil: que, com o Congresso que temos, o governo não tinha outra opção.
Mas tinha. Damos um testemunho a partir da região que todos julgam ser a mais atrasada: já administramos Rio Branco, temos um mandato no Senado, somos de um partido de oposição e sempre estabelecemos uma relação clara e honesta com o governo federal. Talvez porque não tenhamos a única coisa que interessava -os votos que possibilitariam a conquista desse obscuro objeto do desejo, a reeleição-, tivemos poucas respostas.
Em todo o país, a contribuição das oposições e dos movimentos sociais foi desprezada. Dizem: "A oposição não tem um programa". Não é verdade. Além de programas, temos reivindicações, idéias, ponderações e críticas, às quais o governo e seus aliados sempre responderam com desaforos: neobobos, burros, atrasados, para ficar nos mais leves. Um estilo que aposta numa intimidade fisiológica típica da pior tradição. É a conversa na sauna, a era Serjão.
Enganam-se os que pensam que esse momento será superado com a renúncia de dois ou a cassação de outros três deputados, ou até mesmo com a eventual -e improvável- demissão de um ministro deslumbrado e desaforado. Outros escândalos virão enquanto o governo não refizer sua escolha fundamental, ou enquanto o Brasil não escolher outro governo.
Com a renúncia dos deputados, está caracterizada a compra de votos. Só resta uma saída: a CPI. Senão, onde o governo vai buscar credibilidade para fazer as reformas?
Por enquanto, o que podemos fazer é agradecer à Folha por mais esse serviço prestado à democracia e apelar aos deputados envolvidos para que completem o serviço. Falem mais, passem de acusados a acusadores. Saiam da cena levando algo mais que dinheiro.
Afinal, depois de tantos escândalos, não nos envergonhamos por sermos acreanos. Mas estamos apreensivos com o futuro do Brasil. Porque a corrupção e o fisiologismo no Acre estão expostos e têm seus dias contados. E o Brasil, como ficará sem o "faroeste" amazônico para depositar suas culpas?
O Acre começou este século fazendo uma revolução para anexar-se ao Brasil e o terminará fazendo outra revolução para integrar-se, com sua rica biodiversidade e suas experiências comunitárias de desenvolvimento, ao mundo da economia globalizada, sem submissão.
Temos certeza de que, num futuro próximo, seremos a referência de mudança com que Chico Mendes sonhou. E as novas gerações poderão participar da política sem a impressão de entrar "numa fria". Quanto ao Brasil, infelizmente, não temos a mesma certeza.

Marina Silva, 39, historiadora, é senadora pelo PT do Acre.

Jorge Viana, 37, engenheiro florestal, foi prefeito de Rio Branco (AC) pelo PT (1993-96).

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