São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 1997
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A segunda cassação de um cientista

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

No "Diário Oficial" do Estado de São Paulo (29/4), requerimento do deputado Pedro Dallari (sem partido) "solicita informações" ao secretário da Saúde sobre dezenas de atos administrativos da direção do Instituto Butantan. Em meio a um extenso besteirol, que inclui perguntas que constituem verdadeiras acusações, vem o verdadeiro trunfo ostentado pela mediocridade militante que alimentou a indagação do desinformado parlamentar: a denúncia de que o diretor do Instituto Butantan, Isaias Raw, alcançou a compulsória.
Aliás, pelo que fez pelo Brasil, foram muito mais que 70 anos de integral dedicação. Poucos conseguiriam realização comparável em 140 anos.
Todavia o que revolta a comunidade científica nesse ato ignóbil é que, para alcançar seus objetivos, tenham recorrido os medíocres a acusações infundadas contra a atual administração, manchando a honra de cientistas de primeira linha e cidadãos irreprocháveis.
Ouvi falar pela primeira vez em Isaias Raw em 1965, quando fui chamado a opinar sobre uma técnica revolucionária de ensino de ciências (PSSC) que ele estava introduzindo no Brasil.
Depois, quando Mário Schenberg passou, em 68, alguns meses em minha casa nos EUA, expôs, com sua eterna postura de Cassandra da ciência brasileira, uma lista daqueles que poderiam vir a ser cassados.
Mais tarde, após o fato consumado, mostrei-lhe como tinha errado redondamente. Até o Isaias, que nunca tivera nenhuma militância política, fora cassado. Sua militância era pela pesquisa, pela competência. E isso era então, para muita gente, um pecado tão grande quanto ser do MR-8.
De volta definitivamente ao Brasil, enchi-me de esperança e satisfação. Em bancas de jornais, toda semana, em todo o país, os excelentes kits, imaginativos e eficientes, que ensinavam a criança, um pouco à moda de Paulo Freire, a associar a vida à ciência.
A mesma fundação (Funbec) que produzia esses excelentes e baratíssimos conjuntos fabricava os primeiros instrumentos científicos e laboratoriais brasileiros. O cardiógrafo era tão bom que até hoje ainda o encontramos em uso. A Funbec era obra de Isaias.
Mais tarde, eu vi Isaias Raw "fuçando" incansavelmente em gabinetes de ministros e secretários de Estado, em luta cotidiana para conseguir verbas para o Instituto Butantan, até sua chegada ao acelerado declínio imposto pelo corporativismo politizado.
Sempre achei que ele iria perder. Que o Butantan sofreria o mesmo destino de tantos outros institutos em que a massa de mediocridade neurônica atingia seu ponto crítico, de não-retorno.
É que nunca pensei que houvesse tanta adrenalina. Aos poucos, o instituto recuperou seu prestígio e hoje é reconhecido internacionalmente pela sua excelência, pois soube equilibrar atividade de pesquisa com a qualidade de produção de insumos de várias naturezas. E quem fez isso foi a liderança do professor Isaias Raw.
O deputado Dallari menciona um sem-número de reclamações que teria recebido. "Os cães ladram, é sinal de que cavalgamos", dizia Sarmiento, intelectual argentino que se tornou presidente de seu país e não se corrompeu.
Tenho certeza de que o deputado não mentiu. Eu, porém, garanto que essa gente toda não realizou, todos juntos, um décimo do que fez, científica e administrativamente, o professor Isaias Raw. E tenho certeza por uma razão muito simples. Tivessem os denunciantes qualquer competência, não se esconderiam nos porões obscuros do anonimato.
E sei, também, que vão procurar encontrar para esta minha manifestação de indignação e repugnância motivações inconfessáveis, pois medíocres julgam os demais por si mesmos.
Todavia a destituição do professor Isaias Raw é irreversível. Este artigo serve, pois, apenas como desabafo pessoal. Não terá nenhuma consequência concreta. Serve também como homenagem a um tipo de cidadão cada vez mais raro no Brasil.
O professor Isaias Raw conseguiu esse feito único: ser cassado duas vezes e pelo mesmo motivo. Por suas realizações, seu inconformismo, sua luta incansável contra o obscurantismo, contra o corporativismo, o que desperta ressentimentos e pavor naqueles que não têm outro recurso senão a intriga velhaca dos bastidores políticos.

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