São Paulo, sexta-feira, 23 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Originalidade e graça compõem um grande cineasta

JEAN-MICHEL FRODON
DO "LE MONDE"

Em primeiro lugar, trata-se de uma história extraordinária. Em 74, Mohsen Makhmalbaf, um jovem ativista contra o regime do xá, participa de um atentado no qual, ao tentar roubar a arma de um policial, acaba por atingi-lo. Makhmalbaf também é ferido e depois preso e torturado.
Ficará quatro anos na cadeia até a vitória da revolução do aiatolá Khomeini. Vinte anos depois do atentado fracassado, Makhmalbaf torna-se um dos maiores cineastas iranianos. Para a filmagem de "Salam Cinéma", publica um anúncio em busca de figurantes que desencadeia um verdadeiro motim, tão grande é o número de candidatos. No meio da multidão, está sua antiga vítima, ainda policial, a serviço do novo regime. A partir desse reencontro, o cineasta concebe argumento de "Um Instante de Inocência".
Histórias extraordinária nem sempre dão bons filmes. Mas, nesse caso, sim. Makhmalbaf, em vez de se contentar e lucrar em cima da anedota, conseguiu dar um salto triplo. O primeiro salto é narrativo: longe de limitar-se ao relato de sua própria aventura e de suas coincidências, o diretor utilizou a situação como material de um argumento muito mais complexo, no qual interferem e se cruzam política e moral, idílio e cinema.
Essa criatividade só foi possível com o "salto" estilístico, que parece inventar os métodos de uma direção que funde o dispositivo do documentário e uma ciência que domina os enquadramentos e a montagem.
"Um Instante de Inocência" proporciona momentos de pura graça, com um toque de estranheza: desde a chegada do policial à capital até as andanças dos protagonistas. Oferece também sequências emaranhadas de comicidade e emoção quando, por exemplo, o diretor e o policial se enfrentam para escolher, cada um, o jovem ator que os representará 20 anos antes, ou quando o guarda ensina a "seu" ator a tática e os gesto do policial.
Há ainda momentos fantásticos, quando entram em cena as relações sentimentais entre os personagens de outrora e os intérpretes de hoje. E, por fim, não se deixa de evocar o estatuto das mulheres no Irã atual, que aparecem como fantasmas, assombrando o presente, sob os véus -materiais e sociais- que cobrem seus rostos.
Assim se produz o terceiro "salto", em seu senso político, responsável pela força e beleza do filme. Esse salto se apóia em uma escolha aparentemente extravagante: "Um Instante de Inocência" é realizado por duas equipes distintas, cada uma com sua câmera.
Uma é colocada à disposição do policial e sua versão jovem. A outra fica com o diretor e seu representante adolescente. Um investe em sua busca amorosa do passado, e outro, em seu plano de atentado. A maneira como as condições da filmagem e da montagem respeitam ou transgridem esse dispositivo fornece os mais sutis -às vezes esplêndidos e burlescos- descompassos em torno da história narrada.
Criticar o presente em nome do passado e o passado em nome do presente é a verdadeira aposta do filme. É uma abordagem particularmente legítima por parte do autor, que pagou muito caro por sua oposição ao xá e é hoje um semiproscrito do regime dos aiatolás, depois que eles tentaram transformá-lo, no início da carreira, em seu cineasta oficial.
Levar a cabo essa busca com um tom lúdico, no qual a simplicidade das imagens e a atenção aos personagens nutrem continuamente uma reflexão audaciosa e complexa, evidencia aquilo que ultrapassa a habilidade (técnica) de narração e a precisão (intelectual) de reflexão. Mohsen Makhmalbaf é um grande cineasta.

Tradução Lilian Escorel

Texto Anterior: República islâmica faz cinema original
Próximo Texto: Che usou careca, mas era só um disfarce
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.