São Paulo, quinta-feira, 29 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O aiatolá Gorbatchov

OTAVIO FRIAS FILHO

Começou a desmoronar o fundamentalismo islâmico? A questão é decisiva pois o Islã, desde o colapso soviético, assumiu a posição de principal força organizada contra o modelo ocidental. Bem ou mal, a maioria dos países do Oriente Médio já está reconciliada com o Ocidente. E agora o Irã dá sinais de que começou a viver a sua "revolução de veludo".
Mohammad Khatami, o presidente eleito domingo, é tradutor da "Democracia na América", clássico de Tocqueville sobre o sistema americano. Foi ministro da Cultura durante os dez anos em que se gestou o milagre do cinema iraniano, mania intelectual em todo o mundo. Sua base eleitoral são os jovens e as mulheres.
Até na aparência ele discrepa do panorama bíblico da cúpula que controla a Revolução de 1979. Sem barba e turbante, Khatami passaria por algum executivo de multinacional ou professor universitário. Sorridente, como Gorbatchov, ele ensaia a coreografia cautelosa de quem se prepara para grandes saltos.
O Irã vive aquele momento de equilíbrio em que a democracia desponta ainda sob eufemismos, como a "glasnost" na falecida União Soviética. O regime mantém o controle: segundo o "Herald Tribune", Khatami estava entre os 4 aspirantes autorizados pelo Conselho dos Guardiães a concorrer, numa lista de 238 nomes!
Uma auto-reforma, portanto, manobra sempre arriscada na condução dos regimes ditatoriais. Foi tentada, para ficar em exemplos menos remotos, pelo franquismo na Espanha e pelo salazarismo em Portugal, sem sucesso. Mesmo no caso brasileiro, tudo o que se conseguiu foi amortecer a queda do regime militar.
Não se sabe como um país cai na democracia. A população vive de crenças mais vitais do que essa superstição de que metade mais um formam uma cifra mágica. Todos projetam o seu cego interesse na democracia e poucos admitem, com Rosa Luxemburgo, que "a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente".
No curso da auto-reforma, um incidente qualquer leva o regime a engrossar, mas os comandos já não respondem, o que serve de senha para um deslanche oposicionista que rompe o balanço das forças e joga o poder no meio da rua. Ninguém consegue exercê-lo sozinho; ao prolongamento dessa incapacidade chamamos democracia.
Como forma social, a democracia requer uma trama de forças contraditória o bastante para que o sistema não funcione sem que elas se coordenem, restringindo-se mutuamente. A diversificação de mercado, no Islã ou na China, tende a sabotar o centralismo, acentuando a sua inoperância crescente em meio à complexidade.
O ponto de saturação, porém, é moral, quando até a repressão descrê do que é chamada a fazer. Aí a política reaparece, por um lapso de tempo, com face humana. Para alcançar essa graça, Khatami precisa de um gesto, que no seu caso terá de ser a revogação do bárbaro decreto contra a vida do escritor Salman Rushdie.

Texto Anterior: O aplauso e a vaia
Próximo Texto: ACIDENTE GEOGRÁFICO; A VOZ DAS RUAS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.