São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997
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SALVE O CINEMA

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Salve o Cinema" (Salaam Cinema) realiza o oportuno cruzamento da nova geração do cinema iraniano -um dos fenômenos fílmicos da década de 90, para o bem e para o mal- com a eurocêntrica celebração do centenário do cinema, cujo ápice aconteceu em 1995. Não surpreende que traga a assinatura de Mohsen Makhmalbaf, o mais explicitamente cinéfilo diretor dessa escola.
Este desenvolve-se como uma autêntica fábula contemporânea, em que um monarca iraniano rompe sua histórica resistência aos filmes ao se apaixonar por uma musa das telas. A obsessão amorosa o faz largar tudo visando também ele inserir-se no universo cinematográfico, tornando-se ator.
A mesma pretensão funciona como ponto de partida de "Salve o Cinema".
Makhmalbaf fez publicar num jornal de Teerã uma chamada de novos intérpretes para o filme que preparava para rodar.
Uma multidão de 5.000 candidatos atendeu ao chamado.
As primeiras cenas, apresentando a densa massa humana que se acotovela tentando uma chance, anunciam uma opção pelo estilo documental que se faz matizar.
Makhmalbaf corta para o interior do edifício em que os testes -e o restante do filme- vão se desenrolar. Ao centro, um retângulo branco marca a posição para os atores em potencial.
Na frente, o próprio Makhmalbaf senta-se numa escrivaninha, câmera a seu lado, um espelho estrategicamente voltado para o cenário dos testes.
Tabuleiro posto, o jogo se desenvolve com precisão. Em grupo ou isoladamente, os candidatos assumem seus lugares, oferecendo-se à autoridade do diretor.
"Tento usar esses três níveis: o poder, o povo e o cinema", reconheceu Makhmalbaf. Com alguns dos atores amadores, ele brinca de "cinema de ação", pedindo-lhes que reajam a uma saraivada de balas ou a uma granada.
Para a maioria, o desafio é outro: provar-se capaz de rir e principalmente de chorar, a mando de um assumidamente despótico Makhmalbaf. Esse teste das lágrimas impõe-se como a prova dos nove.
Muitos fracassam, alguns recusam-se, um punhado triunfa. O primeiro candidato finge-se de cego e demonstra talento onde não esperava encontrá-lo. Uma jovem responde ao anúncio projetando o cinema como simples meio para deixar o Irã, ir a Cannes e reencontrar o namorado do qual foi forçada a separar-se.
A censura iraniana vetou a cena na cópia para difusão interna, o filme completo foi a Cannes -mas a garota não.
Outro candidato, revoltado com o fracasso, desafia Makhmalbaf a provar a validade do teste do choro. Um assistente da filmagem, o ator Moharram Zeynalzadeh ("O Ciclista", do mesmo diretor), não se faz de rogado, aceita a aposta e confirma a procedência do critério -para logo revelar ter ele mesmo começado numa batelada de testes como a que agora assistimos.
Duas amigas complementam-se e dispõem-se até a traição pessoal em nome da escolha. Resistem o que podem a passar pela prova do choro, mas aplicam-na sem piedade quando são convidadas por Makhmalbaf para assumirem provisoriamente o posto de diretor-carrasco.
Nos diálogos que desenvolve com os candidatos, Makhmalbaf logo deixa claro a essência do seu projeto: denunciar as fronteiras voláteis entre documentário e ficção, arte e realidade, técnica e amadorismo.
"Se o cinema reflete a vida, então há espaço para todos", sintetiza em dado momento.
O filme que iria fazer já está sendo feito. Os testes já são cinema. As pessoas, e ele mesmo, tornam-se personagens, com a simples aquiescência de postarem-se diante da câmera.
Nada mais natural, assim, que Makhmalbaf arme uma falsa cena de encerramento, com "fim" escrito na claquete, e logo desmonte a expectativa, partindo para uma nova sequência, essa sim derradeira.
Com essa obra aparentemente simples e lúdica, Makhmalbaf assina uma das mais complexas discussões em filme sobre o status do cinema, realizada no próprio ano do centenário (1995).
"Salve o Cinema", reconheça-se contudo, acaba por transcender a efeméride.
É um poderoso cine-ensaio sobre a essência da arte cinematográfica, que, por mais que explicite suas raízes na vida real, reafirma o império do artifício, investiga seu poder como impressionante fenômeno social, tornando Schwarzenegger e Paul Newman modelos para a juventude da supercontrolada Teerã pós-Khomeini.
Denuncia com evidente incômodo o fascínio irresístivel das imagens em movimento, capazes ainda de mobilizar populações na tênue esperança de encontrar num velho cinematógrafo um veículo para a imortalidade. "Salve o Cinema" bem poderia chamar-se "As Massas e o Cinema".

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