São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997 |
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Ator-diretor realiza longa esquizofrênico
INÁCIO ARAUJO
Existe ali um diretor de cinema, Mohsen Makhmalbaf, que também é ator, fazendo o papel de diretor. Existem os candidatos a atores de um filme (convocados por meio de um anúncio de jornal), que serão submetidos a um teste. Como esse teste é filmado, os candidatos serão os atores do filme. Existe, por fim, um documentário sobre a escolha de atores, que aos poucos se revela uma ficção. Makhmalbaf opera, em "Salve o Cinema", uma superposição de camadas pelo menos original, que não só o coloca na linha de frente do cinema iraniano -ao lado de Abbas Kiarostami- como confirma o caráter dessa cinematografia, talvez a única vanguarda em atividade no mundo. Esse é um outro paradoxo evocado pelo filme. Também o Irã parece um país esquizofrênico, onde convivem o fundamentalismo dominante, a cultura persa e ecos do próprio Ocidente. Makhmalbaf ocupa um lugar ao mesmo tempo privilegiado e incômodo, nessa conjuntura. É um ex-preso político, que lutou pela derrubada do antigo regime. É, hoje, um cineasta popular, que sofre na pele as durezas da censura e da repressão em seu país. "Salve o Cinema" procura trabalhar com essas contradições e até exacerbá-las, embora sem tocar em política. Não raro, a questão central do filme é a mesma abordada com tanta frequência por Kiarostami: o que é a verdade? Um candidato apresenta-se dizendo ser cego. Ao fim de algum tempo, o diretor força-o a tirar os óculos e abrir os olhos. Vemos, por fim, que o rapaz não é cego: interpretou esse papel para conseguir o papel. "Isso é cinema", conclui o diretor. Ao menos em parte. Como nesse pequeno teste, todos os outros revelam a dificuldade de ser, de variadas formas. Há pessoas que pensam ser atores. Mas será que são mais atores quando estão representando ou quando fazem o papel de si próprios? Para Makhmalbaf, tudo é "um papel" que representamos. Daí, aos poucos, os espelhos que ficam ao lado do palco adquirirem uma dimensão cada vez mais crucial no filme: a imagem que vemos na tela não é outra coisa que um reflexo de cada espectador. O próprio diretor, seria ele o ditador que fustiga os candidatos cruelmente? Ou uma representação do arbitrário regime iraniano? E a sequência de testes que desfila à nossa frente? Seria "real" (no sentido em que essa palavra designa um documentário) ou "fictícia" (isto é, arranjada devidamente para servir aos fins que interessam ao diretor/ditador)? No fim, à medida que lança sua teia, "Salve o Cinema" vai nos envolvendo, nos comprometendo com as indagações lançadas de início e com a maneira sub-reptícia como essas questões se deslocam e vão se tornando mais inquietantes. Mais do que uma homenagem ao cinema, Mohsen Makhmalbaf pergunta aqui ao espectador o que é o cinema. Qual a parte de real e de representação, de documento e de ficção, de memória e de presente implicada nele? Como encontrar a difícil identidade entre a matéria que se grava em celulóide (o filme, em suma) e a vida? "Salve o Cinema" não é propriamente uma saudação a esta arte, feita por ocasião de seu centenário. É uma indagação em que o autor se permite jogar todas as contradições -pessoais, do cinema, do Irã- e deixar que se multipliquem. Por isso, às vezes parece mais um conto borgiano, em que o cinema confronta sua própria maldição: nunca é tão real quanto deveria ser; nunca é tão falso como poderia. Talvez por isso este seja um filme sem ponto final. Não há último filme, nem ponto final. Filme: Salve o Cinema Produção: Irã, 1995 Direção: Mohsen Makhmalbaf Com: Azadeh Zangeneh, Maryam Keytahn, Feyzolah Ghashghai, Mohsen Makhmalbaf Quando: a partir de hoje no Cinearte 1 Texto Anterior: SALVE O CINEMA Próximo Texto: Filmes de verão chegam às telas americanas Índice |
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