São Paulo, sexta-feira, 30 de maio de 1997
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Fase de 'pedra bruta' começa a ser vencida

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DO ENVIADO ESPECIAL

Virginia Rodrigues estreou o show "Sol Negro", na quarta-feira, em Salvador, como autêntica pedra bruta que começa a ser lapidada pelo acúmulo de experiência como foco principal de atenção de um espetáculo.
Entra recebendo uma pomba-gira, em passos ritualísticos cumpridos na escuridão. O ponto de candomblé se funde à liturgia de "Verônica", cantada em latim. Está estabelecido o sincretismo.
Daí em diante, a cantora irá manter o semblante sério, tenso, conferindo a cada nota cantada a gravidade do som melancólico que sai de sua garganta.
Cheia de naturalidade, emenda "Terra Seca" a "Sol Negro", cantada de forma cândida e emocionada. Parece que vai chorar.
As modulações de sua voz são ainda desordenadas.
Berimbaus e passos ritualísticos de candomblé anunciam "Noite de Temporal", logo no começo o momento mais emocionante do espetáculo. Braços simulando ondas revoltas do mar, Virginia faz um chamamento à tempestade noturna, em voz repleta de fúria e braveza.
Segue-lhe o spiritual americano "I Wanna Be Ready", em que engasga nas palavras e, atriz, coloca as mãos nas cadeiras e encena expressões faciais.
Antes de cantar "Manhã de Carnaval", sorri pela primeira vez ao dizer boa-noite. Logo volta ao olhar zangado, fixo no horizonte. Mas aí é a vez de "Negrume da Noite", que instala na sala ambiente de ritual dominado por uma Virginia que, ao final da canção, cai sambando, bela e imponente. Sorri pela segunda vez.
Como contraponto, o hino "Israfel" toma conta do recinto, dedicado a Deus e aos deuses, em novo momento sublime. Dá lugar à pagã "Amor, Meu Grande Amor", que Virginia canta em voz embargada.
Estabelece-se o laço com a modernidade que faltava ao CD: por vontade própria, converte a obra de Angela RoRo -uma das mais completas artistas brasileiras das duas últimas décadas- num hino gospel, só prejudicado pelo arranjo "fina estampa", destoante.
Ainda assim, evidencia-se a veia antenada da artista, independente de estrelas-guias. É esse mesmo fator que faz estranha sua versão para "Antonico", de Ismael Silva. Aí pode-se ver que Virginia ainda não acumula cacife para fazer frente aos arroubos tropicalistas da versão de Gal Costa, em "Fatal" (71).
Mas aí a cantora volta a ficar à vontade, na maravilhosa "Adeus Batucada", em que se despede enquanto cai de novo de samba e sorri pela terceira vez. O Brasil já tem uma nova diva, ela só precisa ser polida.
(PAS)

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