São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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Dimensões do poder

MARIA DE BETÂNIA UCHÔA CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A monumentalidade tem sido usada desde a antiguidade por regimes políticos de diversas ideologias para expressar poder e prestígio na forma urbana e arquitetônica das cidades. A construção e/ou reconstrução de cidades capitais têm revelado que mesmo sistemas políticos motivados por ideologias diferentes (democracia, fascismo, nazismo, comunismo etc.) têm utilizado formas arquitetônicas monumentais para celebrar o poder, tais como o absolutismo real de Versailles, o império colonial britânico em Nova Déli, o império de Napoleão 3º na França, a Revolução de 1917 em Moscou, a glória e supremacia do 3º Reich, a celebração do império de Augustus na Roma de Mussolini, a "vitória do socialismo" na Bucareste de Ceausescu ou as democracias capitalistas de Washington D.C. e Brasília.
As capitais são o foco de rituais políticos e exibem desenho urbano, espaços e edifícios grandiosos para impressionar as massas e simbolizar o poder de seus líderes. Em regimes autocráticos, a celebração de uma nova ordem política, a busca de grandiosidade, o culto da personalidade e o desejo pessoal de seus líderes são determinantes na intervenção radical na estrutura urbana existente na cidade, que resulta na destruição planejada de períodos de história urbana e arquitetônica indesejáveis e conflitantes com a ideologia vigente de poder do Estado.
Seguindo o padrão histórico das intervenções realizadas por regimes políticos autocráticos em cidades capitais, para dotá-las de um ambiente construído representativo das pompas e glórias do Estado e do poder de seus líderes, tem-se mais recentemente, no período compreendido entre 1985-89, o exemplo da Bucareste de Nicolae Ceausescu, objeto da mais profunda transformação urbana realizada em um centro histórico consolidado, cujos impactos na estrutura urbana existente causaram a destruição quase completa de todo o patrimônio histórico e cultural da capital romena.
Para Ceausescu, a modernização de Bucareste, por meio da reconstrução radical de seu centro histórico para a construção do grandioso Centro Cívico Vitória do Socialismo, deveria expressar as mudanças sociais, políticas e econômicas implementadas durante a era socialista.
Em 1971, Ceausescu visita Pyong Yang, a monumental capital da Coréia do Norte, reconstruída por Kim Il-Sung depois da guerra da Coréia, onde o culto de personalidade é visível em cada monumento erigido em honra de seu "líder supremo e magnífico". Na verdade, Pyong Yang é uma cidade monumento a Kim Il-Sung. A visão de milhares de pessoas disciplinadas na pomposa recepção oficial ao chefe de Estado romeno despertou o interesse de Ceausescu, que ao retornar a Bucareste imediatamente decreta a reconstrução da capital romena.
A celebração da nova ordem política, ou a "vitória do socialismo", seria expressa na substituição das residências unifamiliares do final do século 19, representativas da sociedade burguesa e capitalista dos regimes antecedentes -um acervo arquitetônico conflitante com a ideologia da "sociedade homogênea e coletivizada" essencial para a criação do "novo homem", expressão sempre presente nos discursos e pronunciamentos de Ceausescu.
Além disso, o culto de personalidade a Nicolae Ceausescu consegue superar até mesmo o de Stálin, e a construção da nova capital torna-se a maior prioridade da "época Ceausescu". Os edifícios do novo centro cívico, além de uma escala grandiosa e monumental, são imbuídos de um caráter heróico e triunfante, inicialmente usados para expressar o governo central romeno e que logo vêm a se tornar o símbolo das conquistas pessoais de Ceausescu, o "iluminado" líder que comemora o esplendor de seu regime por meio do projeto megalomaníaco.
O Centro Cívico Vitória do Socialismo tem na Casa Republicii (Casa da República) ou Casa Popolorui (Casa do Povo), como era chamada durante o regime de Ceausescu, e no Boulevardul Victoria Socialismului os principais componentes da composição urbana. O boulevard é a espinha dorsal do novo centro cívico com 92 m de largura e 3,5 km de extensão, começando numa imensa praça, Piata Semicirculara, localizada em frente a Casa Republicii, com capacidade para acomodar meio milhão de pessoas.
Ao longo do boulevard, o grande eixo cerimonial do centro cívico, estão alinhados edifícios de dez pavimentos reservados para abrigar os altos funcionários da nomenclatura comunista e a Securitate, a polícia secreta romena. A Casa da República, cuja área total atinge 300 mil m2, projeto da arquiteta Anca Petrescu, é o maior centro administrativo do mundo depois do Pentágono: 86 m de altura com fachadas de 276 m de comprimento, ocupando 6,3 ha de terreno. Seu lay-out inclui, entre outros, 700 escritórios, bibliotecas, halls com capacidade para 1.200 pessoas, além de abrigo nuclear e residência oficial da presidência. O edifício combina elementos arquitetônicos de gosto eclético, como as colunas de 28 m com capitéis coríntios de sua fachada principal.
Para ilustrar os cenários do poder em regimes democráticos, tem-se o exemplo de Canberra e Brasília, cidades capitais planejadas e construídas em solo virgem para promover a integração nacional de seus territórios. O projeto de Canberra, a capital federal do Commonwealth da Austrália, de autoria de Walter Griffin, em 1912, adota elementos do City Beautiful, tais como o "classical revival" dos espaços abertos, onde estão presentes a simetria e a axialidade dos edifícios e avenidas, incorporando ainda as tendências estéticas da École des Beaux-Arts européia, principalmente "urban beautification", que, segundo Lewis Mumford, não é nada além de um "cosmético municipal" que reduz o trabalho do arquiteto a pura maquiagem das fachadas dos edifícios.
O plano de Canberra é baseado num sistema radial de "grids" que formam configurações geométricas como hexágonos, octógonos e triângulos interconectados por vários eixos que definem os centros do poder governamental, a área de comércio e o centro cívico. Com uma escala urbana monumental, Canberra possui um eixo cerimonial com grandes vistas, em que estão localizados os edifícios mais importantes que simbolizam o centro da nação.
A construção de Brasília no centro do Brasil já era prevista na Constituição de 1891 e torna-se prioridade do governo de Juscelino Kubitschek para promover a integração do território brasileiro. Mais que isso, a construção de uma nova capital seria a proclamação de uma nova era do país. Brasília, originalmente concebida como uma cidade democrática, deveria ser, segundo Milton Santos, um porto harmonioso entre as classes e a conquista do vasto território brasileiro.
O Plano de Lúcio Costa incorpora os princípios do urbanismo moderno, já adotados pelos congressos do Ciam, e de seu manifesto mais famoso, a Carta de Atenas, de 1933, em que o zoneamento da cidade modernista é definido a partir das funções "morar, habitar, trabalhar, circular e recrear". Em Brasília, a ênfase é dada aos edifícios públicos representativos dos poderes que governam a nação brasileira, localizados na Praça dos Três Poderes: o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal e o palácio presidencial -o eixo monumental, que constitui o ponto focal da composição urbana e a expressão simbólica da nova capital, que na arquitetura de Niemeyer vem revestida de exuberância, lirismo e liberdade plástica.
A monumentalidade presente na arquitetura e na estrutura espacial de Brasília vem celebrar a grandeza da nação brasileira e sua busca por novos caminhos e pela afirmação da identidade nacional. Não é resultado dos caprichos de um rei déspota ou do culto de personalidade de ditadores totalitários, que usam a arquitetura da cidade para saciar a sede ávida de autoproclamação. Assim, Lúcio Costa denomina a Praça dos Três Poderes como a "Versailles do povo", o centro simbólico do Brasil enquanto uma nação em busca de modernização. Lá não há palácios para personalidades como Luís 15, Ceausescu, Kim Il-Sung ou Hitler.
Apesar disso, a idéia de conferir grandiosidade à nova capital esteve sempre presente em Kubitschek, que, ao examinar o projeto para o Palácio da Alvorada, respondeu: "O que eu quero, Niemeyer, é um palácio que daqui a cem anos ainda seja admirado". Brasília é o produto da autodeterminação de Kubitschek, surpreendendo até mesmo André Malraux, que indaga ao presidente: "Como o senhor conseguiu construir esta cidade em pleno regime democrático? Obras como Brasília só são possíveis sob uma ditadura".
Não cabe neste artigo a análise da utopia de Brasília, enquanto uma proposta de cidade projetada com intenções igualitárias. Este assunto é brilhantemente explorado na obra de James Holston. Já em 1963, Niemeyer denuncia a maneira como o plano de Lúcio Costa foi implementado e "os que a construíram não puderam nela ficar". A atitude discriminatória das autoridades brasileiras em relação à Brasília não difere das políticas de planejamento urbano impostas pelos impérios britânico e francês em suas colônias na África e Índia.

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