São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997 |
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Morais alegóricas e realistas
MARCELO COELHO
Estamos agora diante de dois livros "menores", como se diz no jargão crítico, de Svevo e de Buzzati. "A Queda da Baliverna" é uma reunião de 32 contos de Buzzati, publicada originalmente em 1954. Quem admirou, em "O Deserto dos Tártaros" (1940), o extremo controle narrativo, o despojamento da linguagem, o poder de sugestão deste autor, vai, no começo, se enganar a respeito da qualidade destes contos. O Buzzati de 1940 era um notável artista. Na história do oficial Giovanni Drogo, destacado para um posto de fronteira, à espera de uma invasão de tártaros, Buzzati soube criar um clima de inquietação, de pesadelo, de irrealidade, usando de elementos narrativos mínimos. A alegoria de "O Deserto dos Tártaros", a saber, algo em torno do tema da vida desperdiçada, da esperança vã, da morte anunciada, foi trabalhada por Buzzati com sábia discrição; entre dois extremos, Kafka e Beckett, Buzzati soube encontrar um caminho original, menos desesperado, menos humorístico, talvez mais acessível. Nos contos de "A Queda da Baliverna" julgamos encontrar o mesmo artista. Mas logo os contos caem num duplo defeito. Revelam de modo muito fácil seu engenho e sua intenção alegórica. São como piadas bem construídas que se estragam ao serem explicadas pelo próprio autor. O pesadelo descamba para a simples fábula, para o apólogo moral, para o realismo fantástico. Que esperar de um conto em que o protagonista, pecador renitente, é transformado em corvo e sai à procura de uma pia de água benta em Roma, encontrando todas as igrejas fechadas? Ou de outro em que a personagem, tentando escalar um muro por diversão, termina derrubando sem querer um abrigo de indigentes (esse abrigo é a "Baliverna" do título)? Joga-se o tempo todo com o imaginário católico da culpa, da tentação, da indulgência, do temor a Deus e ao Diabo. Os contos de Buzzati são engenhosos, nada mais. Com "A Novela do Bom Velho e da Bela Mocinha", entretanto, os admiradores de Svevo, e mesmo quem nunca o leu, poderão se encantar. Ao contrário de Buzzati, Svevo nunca é alegórico. O tema ético aparece aqui, portanto, não como uma exterioridade narrativa, como decreto fantástico, e sim como alguma coisa que se dá entre o personagem e o narrador, entre o personagem e ele mesmo. Em vez de "julgamento", como em Buzzati, temos em Svevo algo de mais freudiano, ou melhor, algo mais próximo de Machado de Assis. Quero dizer: o termo "racionalização" é freudiano, mas a narração, o ponto de vista, se assemelha à "desfaçatez" que o crítico Roberto Schwarz identificou em Machado de Assis. Quem leu "A Consciência de Zeno" conhece os inúmeros argumentos e contra-argumentos que o narrador inventava para justificar o fato de estar fumando mais um cigarro depois de sua decisão irrevogável de parar com o vício. Nesta novela, vemos as racionalizações de um velhote rico para justificar seu romance com uma linda e vendida trabalhadorazinha de Trieste. O tema da moralidade, em Svevo, é, assim, uma questão de foro íntimo, que a narração, impiedosamente, devassa de um ponto de vista crítico e exterior. Em Buzzati, a moralidade é de imediato uma questão católica, de julgamento externo, e a tarefa do autor seria alegorizá-la de forma imaginativa e surpreendente. No contraste, Buzzati sai perdendo; o fantástico, a alegoria são menos imaginosos do que o realismo astuto de Italo Svevo. É uma pena, quando se pensa que "O Deserto dos Tártaros", de Buzzati, talvez seja uma obra mais pura e bem-acabada do que "A Consciência de Zeno", de Svevo. Mas em "A Queda da Baliverna" é como se Buzzati se rendesse a seus defeitos, enquanto, na novela de Svevo, este se mostra um verdadeiro artista em suas limitações. Texto Anterior: Dimensões do poder Próximo Texto: OS AUTORES Índice |
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