São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997
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A prosa da nova geração

Ethan Canin se destaca entre os jovens autores dos EUA

JOÃO ALMINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Devem refletir a prudência e censura da ideologia politicamente correta, as fórmulas dos cursos de "escrita criativa", além do próprio momento que vivemos. Saltamos da época das grandes revoluções (política, de costumes, cultural) para a dos pequenos ajustes (ou seria a dos impasses insuperáveis?) num mundo já dado. Passou o tempo em que interessavam autores como John Barth, Donald Bathelme ou Thomas Pynchon. Não que estes tenham sumido. "On with the Story" (Que a História Continue), o último livro de John Barth, por exemplo, é fiel a sua técnica, com histórias dentro de histórias, muitos jogos de espelhos e mudanças de perspectivas. Mas hoje esses autores não fazem escola.
Não se vá com isso pensar que a temática literária tenha se tornado bem-comportada. Há histórias de arrepiar os cabelos, sobretudo se são autobiográficas, retratando a mãe embriagada, o pai que comete abuso sexual, a viciada em drogas que se recupera depois de ter passado pela prostituição e assim por diante. Para isso se inventou até um gênero novo, batizado com o nome de "não-ficção criativa" ("creative non-fiction"). Ouvi alguém dizer seriamente que não importa escrever bem, mas sim ter uma boa história. Os editores se encarregam da escrita.
Não percamos tempo com a má literatura do momento. Mas vale a pena conferir o que há de bom. Um dos melhores da nova safra é o escritor Ethan Canin, jovem médico que vive em São Francisco, onde divide, na Market Street, um apartamento de trabalho com outros escritores.
Em seus livros, é intrigante a diferença de personalidade e também de idade entre os personagens que contam suas histórias em primeira pessoa. No conto "Emperor of the Air" (Imperador do Ar), do livro de mesmo título, o primeiro da Canin, o personagem principal é um velho que sofreu um ataque do coração. No mesmo livro, o protagonista do conto "Lies" (Mentiras) tem apenas 18 anos.
Ethan Canin é mestre do detalhe, como na descrição, no conto "Imperador do Ar", dos insetos que devoram o olmo e são o pivô da discórdia entre vizinhos. "Mentiras" é um comentário sobre o amor, que se constrói a partir das maneiras e momentos de dizer "eu te amo" ou de silenciar sobre isso.
O único romance de Canin, publicado em 1991, se passa na pequena cidade de "Blue River" (Rio Azul) -título do livro, à margem do rio de mesmo nome, na região do Mississipi. Conta o desencontro entre dois irmãos que seguem cursos radicalmente distintos na vida: o protagonista, o bem de vida Edward, narrador da história, que julga seu sucesso imerecido, e seu irmão Lawrence, um fracassado, que fora um marginal e mau-caráter como criança.
Lawrence busca o irmão num momento de dificuldade, que não se chega a saber qual é, pois Edward não quer nem sequer ouvir, dá o dinheiro da passagem e o despacha de volta. É uma história de traição, de reflexão sobre o lugar e sentido de lealdade (à família, ao irmão, aos valores, aos princípios, à verdade).
"The Palace Thief" (O Ladrão do Palácio), publicado em 1994, contém apenas três longos contos. Um dos melhores exemplos do clima psicológico magistralmente desenvolvido pelo autor é o do conto "Accountant" (Contador).
Abba Roth conta, em primeira pessoa, a história de sua relação com um colega e vizinho de infância num subúrbio de San Francisco, Daly City. Como em "Rio Azul", há aqui o contraste de personalidades e de destinos. Abba está interessado no futuro, Eugene no presente. Abba estuda, enquanto Eugene passa as noites nos bares. Se não fosse pela presença de Eugene em sua vida, Abba teria se considerado bem-sucedido em sua carreira de contador. Mas se atormenta ao acompanhar o êxito empresarial vertiginoso e surpreendente do amigo e ao esperar dele uma generosa proposta de trabalho, que, quando chega, é desperdiçada. O conto se centra, assim, na análise da inveja, da ambição e dos sentimentos de frustração decorrentes das oportunidades perdidas.
Neste e em vários outros de seus contos, os acontecimentos das histórias são pequenos, mas são magnificados pela lente psicológica por meio da qual os personagens os vêem. Canin impregna certos detalhes (um gesto, um tique nervoso, um fato aparentemente pequeno) de forte densidade psicológica. Eles servem, assim, para traçar com segurança o perfil dos personagens. Além disso, dão o sabor e alimentam o suspense nas suas narrativas. Deste mergulho na alma de personagens que parecem de carne e osso (fracos, mesquinhos, inseguros, ambiciosos, perdidos, deslumbrados), da sutil exploração de seus sentimentos e humores, Canin extrai a capacidade de engajar emocionalmente o leitor.

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