São Paulo, terça-feira, 10 de junho de 1997
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Em campo, desemprego e guerrilha

EDUARDO GALEANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em abril, caíram crivados os guerrilheiros que ocupavam a embaixada japonesa em Lima. Quando os comandos irromperam e, como um relâmpago, executaram sua espetacular carnificina, os guerrilheiros estavam jogando futebol.
O chefe, Néstor Cerpa Cartolini, morreu vestindo as cores do Alianza, clube de seus amores.
Ao mesmo tempo, em Montevidéu, o município oferecia 150 empregos de lixeiro. Apresentaram-se 26.748 jovens.
Para receber semelhante multidão, o jeito foi realizar um sorteio das vagas no estádio Centenário, onde o Uruguai ganhou, em 1930, a primeira de todas as Copas do Mundo.
Uma horda de desempregados ocupou o cenário daquela alegria histórica. Ao invés de registrar o autor dos gols, o placar eletrônico sinalava os nomes dos poucos garotos que conseguiram os postos de trabalho.
Poucas coisas ocorrem na América Latina que não tenham alguma relação, direta ou indireta, com o futebol.
Esse esporte ocupa um lugar importante na realidade, às vezes, o mais importante dos lugares, ainda que ignorem isso os ideólogos que amam a humanidade e desprezam as pessoas.
Para os intelectuais de direita, o futebol costuma servir de prova de que o povo pensa com os pés. Já, para os de esquerda, o futebol é sempre o culpado pelo povo não pensar.
Mas para a realidade de carne e osso, esse desprezo não importa nem um pouco. Não é pela Copa América que o futebol ocupa nestes dias o centro da vida cotidiana. Com ou sem Copa, ali está.
Quando arraigam na terra e encarnam nas pessoas, as emoções coletivas se transformam em festa compartilhada ou naufrágio compartilhado.
E existem sem dar explicações ou pedir desculpas. Gostando disso ou não, para o bem ou para o mal, em tempos de tanta dúvida e desesperança, as cores do clube são, para muitos latino-americanos, a única certeza digna de fé absoluta e fonte do maior júbilo ou da tristeza mais funda.
Li nos muros de Buenos Aires: "Racing, uma paixão inexplicável". Em um muro do Rio de Janeiro, um torcedor do Fluminense rabiscou: "Meu querido veneno".
Alguma mão anônima, em total paradoxo, deixou seu testemunho em uma parede de Montevidéu:
"Peñarol, você é como a Aids: te levo no sangue".
Li e fiquei duvidando. O amor a uma camiseta é tão perigosa como o amor a uma mulher? As letras de tango não esclarecem tal ponto.
Em todo o caso, o pacto de amor do torcedor parece ser mais sério que qualquer contrato conjugal, porque a obrigação de fidelidade não admite nem a sombra de um deslize.
Isso não acontece só na América Latina. Um amigo, Angél Vázquez de la Cruz, me escreve da Galícia (Espanha): "Eu fui sempre do Celta de Vigo. Agora, eu me bandeei para o seu pior inimigo, o Deportivo La Coruña. É sabido que todos podem -talvez devem- trocar de cidade, de mulher, de trabalho ou de partido político, mas jamais de equipe. Sou um traidor, eu sei. Peço que acredite: fiz isso por meus filhos. Eles me convenceram. Traidor, mas pai exemplar".
Para os torcedores à beira de um ataque de nervos, o amor se realiza no ódio ao adversário.
Quando o jogador argentino Ruggeri abandonou o Boca e passou para seu rival River Plate, os fanáticos queimaram sua casa. Seus pais, que estavam dentro, se salvaram por um milagre.
Recentemente, torcedores do Ajax e Feyenoord marcaram um duelo, por telefone e Internet, para brigar em um descampado perto de Amsterdã. O ritual sangrento deixou um morto e numerosos feridos.
A violência suja o futebol, como suja todo o resto neste mundo, onde, como disse o historiador Eric Hobsbawm, "a matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências cotidianas que já não surpreendem ninguém".
Os meios de comunicação costumam irradiar vozes de alarmes contra os efeitos maléficos do futebol. Pode uma população de mansas ovelhas se transformar, por um único motivo, em uma matilha sanguinolenta? Nos estádios estalam, às vezes, as más maneiras, as tensões acumuladas pela desesperança e solidão, que marcam o final do século, na mesma proporção que em qualquer outro espaço de nossas vidas nestes dias.
Na Grécia, nos tempos de Péricles, havia três tribunais. Um deles julgava as coisas: castigava-se, por exemplo, a faca que havia sido instrumento de um crime e ditava-se a sentença quebrando a faca em pedaços ou jogando-o ao fundo do mar. Hoje em dia, seria justo condenar a bola? O futebol tem a culpa dos crimes que são cometidos em seu nome?
O respeito à realidade obrigaria a reconhecer que, apesar de todos os pesares, o campo de futebol é muito mais que um cenário de violência, uma fonte de dinheiro e prestígio político e um valium coletivo.
O campo constitui também um espaço de expressão, de destreza e de beleza, um ponto de encontros e de comunicação e um dos poucos lugares onde os invisíveis se fazem visíveis. Ainda que seja por um momento. E em um tempo em que essa façanha é cada vez menos provável para os homens pobres e os países fracos.

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