São Paulo, terça-feira, 10 de junho de 1997
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Finley rompe a resistência

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Karen Finley e todo o projeto "Babel", do Sesc, estão servindo para romper com o pouco que ainda havia de resistência, de insistência no teatro como arte fechada, encerrada em si mesma. Os mais antigos ensinavam, por aqui, que o teatro tinha por singularidade, por definição, o conflito.
O que dizer diante da oratória essencialmente jesuíta de Karen Finley? Uma oratória sagrada, mas também anti-religiosa, em "We Keep Our Victims Ready" (ou Nós Mantemos as Nossas Vítimas Prontas) -apresentada no domingo, no posto abandonado que sedia o projeto, em Pinheiros.
Como já havia mostrado antes, em "A Certain Level of Denial" (95), a "performer" reúne a interpretação "teatral" com a pregação e as artes plásticas, para fazer de si mesma, de seu corpo, um libelo contra a opressão.
No caso, como da primeira vez, aliás, um grito contra a opressão das "ovelhas negras", como define aqueles que não seguem as regras sociais, que não vivem segundo elas. Em "We Keep Our Victims Ready", expõe sobretudo as mulheres e, embora sem explicitar, as vítimas da Aids, celebradas no ritual de morte.
Antes lê, antes prega e reza, como em algum púlpito, do que representa, embora possam ser identificados personagens no que faz. Artista plástica, ela torna o seu próprio corpo como que parte de uma instalação viva (por sinal, é imperdível a instalação, propriamente, que ela mantém no mesmo projeto "Babel").
Para expressar que as mulheres são "shit", as mulheres dos Kennedy, por exemplo, ela que é conscientemente americana em seu cantochão, cobre a pele de chocolate -para depois cobrir o chocolate de brilho, para celebrar as mulheres, diante do abuso.
É politicamente correta, alguém poderia dizer, mas talvez a melhor descrição seja a de uma artista que acredita, que crê -o que é raro, uma "ovelha negra", também nas artes destes tempos.
Pode chocar, certamente chocou os tantos, principalmente homens, que deixaram a apresentação no meio, mas é igualmente carinhosa com o público. Distribui "pinga", distribui "Sonho de Valsa", conversa e aproxima os espectadores, ainda que seja para fazê-los reconhecerem-se no palco, no que ela diz e faz.
Não falta humor, mas, também aqui, um humor que parece chamar o público para a armadilha. Que leva as pessoas para o centro do ritual, buscando fazê-las sentir e, quem sabe, reagir.

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