São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 1997
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Ensaísta fala sobre dilemas da arquitetura

CELSO FIORAVANTE
DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista à Folha, a ensaísta e historiadora de arquitetura Sophia S. Telles adiantou alguns pontos da arquitetura contemporânea brasileira que pretende discutir na Documenta.
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Folha - Sobre o que discorrerá sua palestra na Documenta? Você vai dividi-la com o arquiteto Paulo Mendes da Rocha?
Sophia S. Telles - Paulo Mendes da Rocha e eu devemos falar na mesma noite. Mas ele deverá falar sobre questões relativas ao seu trabalho, e eu vou tratar da arquitetura brasileira contemporânea de maneira mais ampla e falar de algumas questões suscitadas pelo trabalho de Paulo Mendes da Rocha em particular, sobre quem eu tenho alguns textos.
Folha - Quais questões da arquitetura brasileira você vai trabalhar?
Telles - São duas ordens de questão. Primeiro vou levantar a idéia de que a arquitetura brasileira, de uma maneira geral, dos anos 30 até o início dos 70, não constituiu, não institucionalizou, digamos, uma distância muito grande entre um campo experimental e o campo mais difuso do mercado.
O que me parece interessante é que a arquitetura brasileira, nesse período, pode ser considerada um campo experimental por inteiro. Estou chamando a atenção para uma prática social que perde inteiramente o seu contexto de pensamento.
Em Kassel, vou arriscar uma hipótese, a de que essa particular circunstância brasileira tenha sido um sintoma precoce dos dilemas mais agudos da arquitetura contemporânea, de maneira geral.
É uma hipótese sobre as mudanças de registro, de estatuto das práticas de arquitetura, e o caso brasileiro é uma espécie de modelo comparativo.
Além da arquitetura, só o cinema aqui sofreu uma paralisia tão pesada a partir dos anos 60.
Mas a experiência da arquitetura é mais antiga, uma prática muito mais sedimentada do que a do cinema.
É preciso lembrar que foi a primeira manifestação cultural brasileira que ficou conhecida internacionalmente, já nos anos 40, muito antes de Brasília.
Folha - Esse conhecimento internacional se devia à produção de Niemeyer?
Telles - É mais amplo. Niemeyer era muito importante. E a ação de Lucio Costa na defesa da arquitetura moderna era muito reconhecida.
Houve uma exposição sobre a arquitetura brasileira, em 1943, no MoMA de Nova York. Nos anos 40 e 50, saem livros e números inteiros de revistas estrangeiras sobre o Brasil.
O país conseguia produzir uma arquitetura que era uma referência a ser considerada na produção internacional.
Folha - E o que aconteceu depois dos anos 60?
Telles - A partir dos anos 60, as coisas se complicam no mundo inteiro. Há uma dispersão de idéias e e uma forte oposição ao projeto moderno. É o início do que se chama hoje, genericamente, de pós-modernismo.
E, no Brasil, há , de fato, o regime militar, o que pesou enormemente, por ser a arquitetura moderna aqui muito ligada ao pensamento de esquerda, sem dúvida. As duas ficaram imbricadas, mas não creio que se possa explicar a perda de um contexto de pensamento apenas pelas questões políticas.
Há obras de arquitetura extremamente importantes nesse período, mas elas não têm mais a força de inserção. A arquitetura enquanto prática social é que perdeu, de forma brutal, a sua dimensão pública, o peso cultural que deteve nos primeiros 30 anos.
Folha - Mas essas áreas não submergiram em sua dimensão pública pelo fato de necessitarem de apoio institucional para sua produção e assim ficarem impossibilitadas de assumir um perfil contestatório, que as tornaria mais populares em um período de repressão política, como aconteceu com música, teatro e artes plásticas, por exemplo?
Telles - Eu não estou usando a palavra "contestatório" pois ela define um campo restrito. Parece-me que a questão é mais ampla. Existe um fundo ideológico, sem dúvida, mas ele não se dá diretamente ligado ao fato de ter ou não dinheiro.
Eu acho que toda arte tem um campo experimental, que não responde às demandas de mercado. E, ao fazer isso, ela se coloca na oposição, queira ou não, mesmo não sendo contestatória.
O que vou abordar na Documenta é como que se dissolve essa dimensão pública da arquitetura e como ela passa a ser uma área abarcada pelo campo privado, o que não resultaria em uma má arquitetura necessariamente.
O grande cliente do projeto moderno da arquitetura é o governo ou as empresas institucionais. A idéia de produção industrial sai do projeto moderno, já que não se fabrica uma cadeira com desenho industrial para um cliente particular. Faz-se para uma indústria, que vai vendê-la. É uma coisa mais ampla que resolver o problema de uma ou duas casas.
A partir dos anos 60, eu acho que o mercado poderia, eventualmente, ter uma referência dessas áreas que chamo experimentais. Esses modelos não foram desdobrados. A palavra 'contestatório' talvez encubra, mais do que esclareça, o problema.
Esse contexto de pensamento não é meramente intelectual, é uma espécie de rede de práticas e idéias que sustentam a produção, mesmo quando os projetos não podem ser construídos.
É preciso lembrar ainda que a "arte de contestação" não foi exatamente a melhor desse período. E, no caso da arquitetura, a contestação maior foi, exatamente, contra o projeto moderno, à direita e à esquerda. É uma longa história.
Em Kassel, depois dessa hipótese inicial, vou tentar expor o que me parece ser esse contexto de pensamento a partir, agora, de alguns projetos brasileiros, entre eles, o de Paulo Mendes da Rocha, que, no meu ponto de vista, é um dos raros arquitetos que manteve a obra com uma tensão produtiva durante todos esses anos.
Mas aí vou partir diretamente dos projetos, não de idéias ou ideologias. É a partir dos projetos que me foram suscitadas todas essas questões.

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