São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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Um manifesto contra o horror econômico

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O trabalho morreu, só nos falta a coragem para enterrá-lo. No mesmo túmulo, é preciso acomodar seu sósia e seu irmão gêmeo, igualmente defuntos: o emprego e o desemprego. A morte foi causada pelo distanciamento desastroso entre o território do trabalho e o da economia.
No mundo atual -das multinacionais, do liberalismo absoluto, da globalização, da mundialização, da virtualidade-, o "trabalho", concebido como o conjunto de emprego mais assalariados, é conceito obsoleto, um parasita sem utilidade.
A mudança se dá na natureza mesma do capital: que já não é aquele que expunha as garantias do capitalismo de ordem imobiliária; que já não é aquele em que o conjunto dos homens era indispensável para produzir lucro.
No atual modelo econômico que se instala no mundo -sob o signo da cibernética, da automação, das tecnologias revolucionárias-, o trabalhador é supérfluo e está condenado a passar da exclusão social à eliminação total.
Com essa equação apocalíptica, a ensaísta francesa Viviane Forrester, 71, conclui que o grau de pobreza que atinge o planeta não é resultado de uma crise econômica. Não há crise, diz ela, o que há é uma mutação -mas não a mutação horizontal, apenas, de uma sociedade. Trata-se da mutação vertical, profunda, de toda uma civilização antes fundada sob um conceito que já não existe: o do trabalho, "nosso mais sagrado tabu", comenta, "deformado sob a forma perversa de 'emprego"'.
O livro de Forrester não é nem contra nem a favor do capitalismo. Nem é nostálgico do marxismo. Pelo contrário: é um livro de constatação de que vivemos um período de esgotamento desse sistema e de sua história, sem que tenhamos nada para pôr no lugar. Daí a passividade coletiva, a cegueira induzida, o mutismo provocado por uma espécie de falta de linguagem adequada a que entendamos e expressemos o cataclisma que se abate sobre todos nós.
"Nossos conceitos de trabalho e, por conseguinte, de desemprego, em torno dos quais a política atua (ou pretende atuar), tornaram-se ilusórios, e nossas lutas em torno deles, tão alucinadas quanto as do Quixote contra os moinhos."
Lançado na França em setembro de 1996, o livro de Forrester virou um surpreendente best seller que já vendeu mais de 300 mil exemplares. "O Horror Econômico" ganhou o Prêmio Médicis de ensaio e está sendo transformado em filme pelo cineasta francês Marcel Ophuls.
O sucesso do texto de Forrester está menos no tema árido que analisa e mais na maneira como o faz. Crítica de arte e literatura, a ensaísta utiliza frequentemente como parâmetro a literatura e a poesia em sua análise indignada do sistema liberal e da peste que este carrega em seu bojo e alastra pela Terra: a miséria absoluta da maioria absoluta.
São aliás a indignação, a simplicidade e a clareza na exposição de suas idéias, sem qualquer influência do economês indecifrável, que cativam a atenção do leitor. Qualquer desempregado se sentirá tocado pela crítica precisa de Forrester à falácia política da "criação de empregos" e à desumanidade de um sistema que lucra a partir da vergonha e humilhação de milhões de desempregados mundo afora.
"Que impostura! Tantos destinos massacrados com o único objetivo de construir a imagem de uma sociedade desaparecida, baseada no trabalho e não na sua ausência", diz ela.
"Um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparado a tempestades, ciclones e tornados (...). Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho."
Viviane Forrester é também contundente ao apontar, senão os culpados, pelo menos os lúcidos desencadeadores e mantenedores da situação de naufrágio social da maioria: os sofisticados detentores do poder econômico, que vivem na esfera inabordável da criação do virtual, dos valores financeiros inverificáveis, negociados antes mesmo de terem existido.
Trata-se da casta de privilegiados, que joga as regras de uma ideologia mantida em silêncio, que se esforça por manter em segredo o grande ordenador do sistema: o lucro, sua base e matriz, em torno do qual tudo é organizado, e que aparece sob a forma das chamadas "criações de riquezas".
O crime, para Forrester, é o silêncio, ou o "discurso lacunar", de que se valem os donos do poder para preservar a qualquer custo essas riquezas que "beneficiam sempre o mesmo pequeno número, cada vez mais poderoso, mais capaz de impor esse lucro (que lhe toca) como a única lógica".
Nessa lógica -destrutiva de milhões de vidas-, a prioridade não é o bem-estar ou a sobrevivência das populações, mas sim o "andamento dos mercados", o lucro e seu horror, a que só interessa ou só é "útil" o homem que for rentável.

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