São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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Tradição, família, propriedade e sacanagem

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O estilo espontâneo de Hebe Camargo esconde uma operação complexa. Podemos resumi-la com a seguinte pergunta: como alguém pudibundo pode ser ao mesmo tempo pornográfico? Pois Hebe o é -e nos dois casos em doses superlativas.
Está aí, na alquimia entre o moralismo mais enérgico e a baixaria mais desabrida, o segredo de seu sucesso comercial e de sua enorme ascendência sobre o público menos esclarecido.
Em matéria de política, Hebe sintoniza com as Senhoras de Santana: desqualifica o Legislativo, diz que o símbolo de Brasília deveria ser um rato, grita pela pena de morte, conclama o auditório a se insurgir contra a bandalheira, exige ordem, autoridade, vergonha na cara.
Até aqui, o discurso moralizante gravita na órbita da velharia, faz eco às aspirações da TFP (Tradição, Família e Propriedade), dos ratos de missa, da mentalidade dos pequenos proprietários que se imaginam constantemente ameaçados pelo caos ou a "ira dos de baixo". Não é por acaso que seja esse o figurino que saiu em marcha pelas ruas em 1964.
Mas toda essa, por assim dizer, pudibundaria militante, representa apenas um lado de Hebe Camargo. Há um outro, não menos estridente, que lhe completa a figura.
Em matéria de costumes, Hebe gosta de escandalizar. Insinua-se na tela, estimula piadinhas "picantes", adora os trocadilhos fálicos, trata o sexo como sinônimo de sacanagem de salão, inflaciona, enfim, como pode o repertório pornográfico de seu programa. Todos estão lembrados da modelo que este ano atravessou seu palco vestida como se fosse Eva, sem que houvesse qualquer razão para isso.
À primeira vista, o desarranjo de tal combinação não poderia ser maior. Seria mais ou menos como um pai de família que mora com suas filhas virgens num bordel.
Mas, numa época gelatinosa como a nossa, conservadorismo e permissividade não necessariamente se excluem -e muitas vezes vão mesmo de mãos dadas. Dercy Gonçalves é um exemplo disso; Fausto Silva é outro. Em todos os casos, o ponto essencial está no ziguezague desnorteante, que vai sem escalas da apologia da sacanagem à exaltação dos valores da família e vice-versa.
Mas há ainda um terceiro elemento que singulariza Hebe. Reduzido a uma fórmula, ele está todo contido na pergunta "não é uma gracinha?", que a apresentadora transformou no seu bordão.
O "não é uma gracinha?" -que não requer resposta e funciona antes como afirmação enfática- serve para amaciar a oposição entre o lado carola e o lado porra-louca da apresentadora.
Por meio da fórmula, Hebe dissolve os contrários, neutraliza os excessos de sua fala e o grotesco do que leva ao ar. Surge então a "tia Hebe", a quem tudo é permitido, porque, feitas as contas, ela não passa de uma "tia" e, portanto, também "é uma gracinha".
É esse "amaciamento" sorridente da baixaria que faz com que "Hebe" seja visto, apesar de tudo, como uma diversão familiar. Então não há o que temer. Ruth Cardoso pode ir a seu programa sem medo de fazer papel ridículo. Música sertaneja, colóquios pró-pena de morte, desfile de peladas, exaltação da ordem e promoção da desordem -enfim, tudo vira uma gracinha com Hebe.
Não há, na TV brasileira, exemplo mais acabado de como o atraso pode ser up-to-date. Ela é, parodiando um bom professor, a prova viva do que não muda no Brasil.

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