São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 1997
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Os caminhos da esquerda

IVAN VALENTE; NILDO OURIQUES

A esquerda não deve temer enfrentar claramente os problemas cruciais da realidade latino-americana
IVAN VALENTE
NILDO OURIQUES
Em reuniões havidas neste semestre, em Tepoztlán (México) e Santiago (Chile), importantes figuras da esquerda latino-americana e intelectuais debateram teses para construção de uma alternativa às políticas neoliberais. Os cientistas políticos Jorge Castañeda e Roberto Mangabeira Unger publicaram nesta Folha artigos expressando conclusões dessas reuniões.
Todo esforço para criar alternativas à política do capital financeiro atualmente dominante na América Latina é bem-vindo. Contudo as propostas merecem considerações de várias ordens.
No centro do diagnóstico de Tepoztlán/Santiago está o financiamento do Estado. Nesse sentido, como a proposta descarta endividamento externo ou financiamento deficitário, a saída "criativa" encontrada foi um conhecido instrumento de política econômica do conservadorismo norte-americano: aumento do imposto sobre o consumo!
Privilegiando essa via, pretende-se chegar a uma receita pública em torno de 40% do PIB. É um caminho oposto, por exemplo, à proposta de reforma tributária do PT, que privilegia os impostos diretos e a progressividade.
O segundo elemento dessa estratégia "consiste em estabelecer pacotes crescentes de direitos sociais para todos os cidadãos, desvinculados do emprego e financiados com os recursos provenientes da maior carga tributária".
O objetivo é claro: liberar as empresas de uma parte da carga social, transferindo-a à sociedade (vide o debate sobre o "custo Brasil"). As coincidências com a política dominante são nítidas: se com tal "alternativa" teremos medíocres taxas de crescimento, não podemos aumentar o nível de emprego -que antes financiava, bem ou mal, os direitos sociais. Assume-se o desemprego como uma realidade imutável.
Na reunião de Santiago passou-se a fazer referência aos processos de estabilização monetária em curso no continente latino-americano. Mas nada se diz do mito da "moeda forte". A privatização de empresas públicas como meio de abater a dívida pública interna e reduzir os juros pagos pelo governo passou a ser defendida.
Assim, chancela-se a rapinagem do patrimônio público que vem sendo posta em prática na América Latina e adota-se o suposto teórico de que é a "necessidade de financiamento do Estado" que determina a elevação da taxa de juros e o aumento da dívida interna.
Esquecem que a dívida é alta porque os juros são elevadíssimos e não o contrário. Quanto a isso, o exemplo da Vale é emblemático: o governo usou 50% da receita da "venda" para pagar menos de um mês de juros da dívida interna. Isso demonstra que, ainda que se apurasse muito mais, os juros não se reduziriam. Contraditoriamente, nesse ponto decisivo, a proposta que se pretende alternativa assume a receita do projeto que anuncia combater.
Nesse terreno, a proposta não pode fundar apreciação consistente em situações como a brasileira, em que aumenta exponencialmente o peso do serviço das dívidas externa e interna, agudiza-se o déficit público, e o balanço de pagamentos avança no fio da navalha. Ou seja, semelhante posicionamento só pode conduzir ao silêncio sobre os impasses desses processos de estabilização, que estão apontando para um futuro nada promissor para a economia e os povos do nosso continente.
No terreno político, todo esforço é dirigido para "mudar as alianças em escala continental", na qual a esquerda deveria adotar a chamada "estratégia de centro-esquerda". Sob esse aspecto, é importante notar que uma das decorrências mais notáveis da política em curso é a intensa polarização que, no terreno econômico-social, promove o empobrecimento das camadas médias.
As consequências contraditórias têm sido radicalização política em alguns lugares (que o digam os dirigentes do Equador recém-apeados do governo) e, em outros, virtual desaparecimento do centro, com seus representantes efetivos ou potenciais integrando-se à direita ou perdendo base e significação.
Em todo caso, não se pode dizer que as reuniões do México e do Chile não tentaram inovar. O que de lá saiu rompe com a tradição de esquerda, despolitiza as questões econômicas e abdica de explorar o potencial de mudança originado pela crise atual.
É um esforço que não consegue transpor o umbral de sua própria proclamação: ser "diferente do 'consenso de Washington', do projeto populista de antes e de uma versão social-democrata adocicada ou temperada com consciência social".
O caminho da esquerda, parece-nos, deve ser outro. Ela não deve temer enfrentar claramente os problemas cruciais da realidade latino-americana: dívida externa, pilhagem do Estado, a exemplo das privatizações, transferência de recursos líquidos para o centro do sistema, concentração de renda, superexploração dos trabalhadores, reforma agrária, depredação ambiental e o caráter crescentemente antidemocrático que os regimes no continente vão assumindo. Pontos que só um programa democrático popular -cuja marca seja a construção de nações integradas no mundo de modo não submisso- pode responder.

Ivan Valente, 50, é deputado federal pelo PT de São Paulo e membro do diretório nacional do partido.

Nildo Ouriques, 38, é professor do Departamento de Economia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

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