São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 1997
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Fernando Malasartes Copperfield

LUÍS PAULO ROSENBERG

Pronto, mais um conto do vigário na praça. O presidente não consegue cortar o dispêndio do governo federal que gera déficit fiscal, comprometendo, assim, o sucesso de seu programa de estabilização, e começa a perder votos? Conte com algum burocrata na equipe econômica para ajudar a iludir o respeitável público com uma mágica, uma prestidigitação tecnocrática.
Na verdade, a semelhança mesmo é com a famosa sopa de pedra da lenda de Pedro Malasartes. Sob o pomposo nome de Fundo de Ativos, sai a "solução" final para o problema dos inativos da União, que liberaria cerca de R$ 20 bilhões por ano de gasto público para outros fins. A receita da sopa é a seguinte:
* Cria-se um fundo, composto por receitas obtidas com a privatização, ações de empresas que não serão privatizadas, imóveis públicos e créditos a receber da União. É a pedra da sopa, como veremos a seguir;
* refaz-se o cadastro dos funcionários públicos aposentados, para eliminar a pilantragem; extingue-se a previdência especial para funcionários públicos -que serão contratados, daqui para a frente- e se colocam os ativos governamentais destinados ao fundo sob gestão de especialistas do setor privado.
Essa é a parte substantiva da iniciativa, a carne, os legumes, o óleo e o sal da sopa. Que, obviamente, não precisa da criação do fundo para ser implementada.
A pergunta óbvia que ninguém está fazendo é: para que o fundo? Não há ganho líquido, nem de diminuição de gastos nem de aumento de receita. Não há criação de riqueza nem de eficiência. Simplesmente corta-se o mesmo bolo em hexágonos, em vez de cubos, e se alega que vai dar para encher mais barrigas.
Os burocratas que venderam esse peixe podre ao presidente alegam que o fundo traz uma vantagem adicional: enquanto ele não for capaz de gerar os bilhões anuais em receitas, a União vai emprestar-lhe os recursos e não gastá-los diretamente com os aposentados.
Em jargão do FMI, isso equivale a trocar um dispêndio (que é incluído no cálculo do déficit público) por um empréstimo concedido pelo governo federal, que não é enquadrado como tal. Dessa forma, a criação do fundo reduziria o déficit público, pelo menos contabilmente.
Nada contra dar o drible da vaca no FMI. Tenho muito orgulho de, no início dos 80, ter feito parte da equipe econômica que criou essa aberração, o déficit operacional. Conseguimos, com a solidariedade discreta dos próprios técnicos do FMI, subtrair do conceito de déficit nominal -o indicador principal da qualidade da política antiinflacionária em execução- o valor referente à inflação e, assim, conseguir cumprir as metas de austeridade.
Qual a minha moral, portanto, em denunciar a empalhação atual?
Em primeiro lugar, não temos metas a cumprir com o FMI como naquele tempo, quando a suspensão do programa que mantínhamos com o "gendarme" das finanças internacionais representaria o colapso da nossa economia.
Em segundo lugar, estávamos levando no bico uma agência multilateral que queria impor à nossa sociedade mais sacrifícios do que poderíamos tolerar num processo de abertura política.
Mas, principalmente, nenhum de nós era otário de se iludir com nosso próprio truque. Sabíamos que as equações macroeconômicas não mudam em função dos apelidos que lhes estão sendo dados. Passou a existir o conceito de operacional, mas, tendo sido mantido o mesmo padrão de geração de déficit, nada iria mudar no processo inflacionário.
O tal Fundo de Ativos, além de ser primário no seu simplismo, é um retrocesso, pois cria uma vinculação estapafúrdia entre parte do patrimônio federal e uma despesa específica, o pagamento de aposentados. Quem garante que em alguns anos não teremos uma revisão de prioridades, que tornará a rigidez introduzida pela vinculação um problema maior?
O ridículo em que fica esse governo é que ele prega a aprovação do Fundo de Emergência usando exatamente o correto argumento de que vincular usos e fundos federais é um absurdo. O mesmo absurdo subjacente a essa porta dos fundos que, agora, ele tira do bolso do colete para fingir que há substituto ao imprescindível corte de gastos.
Triste é a posição de FHC. Ao ameaçar-nos com a criação já do fundo, até por medida provisória, ou esse ex-ministro da Fazenda é despreparado, ingênuo por acreditar nos argumentos dos seus tecnocratas (como o fazendeiro que entrou na conversa fiada de Pedro Malasartes e compareceu com a parte substantiva da sopa de pedra), ou é ele o pai da idéia, mais uma vez valendo-se da agilidade de seus cinco dedos para fazer o povo acreditar que é solução o que não passa de mero rearranjo.

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