São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 1997
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Ambulância e perambulância

PEDRO SIMON

No início desta década, em seu Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) identificou o desemprego como a "ameaça devastadora dos anos 90".
Segundo o documento, a situação seria ainda mais deteriorada nos países em desenvolvimento, onde, para equilibrar o mercado de mão-de-obra, era "necessária a criação de quase 1 bilhão de novos postos de trabalho". Ultrapassada pouco mais da metade do período, o prognóstico já é diagnóstico. Pelo menos no Brasil.
Não vai longe o tempo em que a grande massa de trabalhadores expulsos pela seca, pela modernização do campo e da cidade, pelo latifúndio e pela pobreza viajava nos andaimes da construção da Grande São Paulo. Pois bem, no último abril, quase 100 mil trabalhadores perderam seus empregos, apenas na região metropolitana paulistana.
Isso significa que, no curto espaço de tempo de uma folha de pagamento, um contingente de trabalhadores equivalente à população de uma cidade de porte médio ficou sem seus envelopes, exatamente onde já se constituiu, em passado recente, a grande "meca" da mão-de-obra de todo o país. Segundo o Dieese e a Fundação Seade, já há 1,359 milhão de desempregados na Grande São Paulo.
Trata-se de uma realidade perversa, principalmente porque o mercado de trabalho, ante tamanho contingente que se debruça sobre as páginas de classificados, considera "velhos" os brasileiros maiores de 40 anos e "incapazes" todos aqueles cujas carteiras de trabalho não registram novo contrato nos últimos seis meses.
É por isso que o desemprego dos "velhos" cresceu, em um mês, 12,8%, e uma parcela significativa dos "paulistanos" já tem, nas páginas em branco de suas carteiras de trabalho, o seu "atestado de incapacidade".
Aí, a sobrevivência abre mão do direito. O número de trabalhadores sem carteira assinada, no setor privado, cresceu 18,4% nos últimos 12 meses e, no total, duplicou na última década. Isso significa que o passaporte para a seguridade social, ainda que precária, tornou-se, também, inválido. Não é à toa que as calçadas das cidades de todo o país estão, cada vez mais, congestionadas de ambulantes e perambulantes.
Essa situação, que se coloca cada vez mais como estrutural, está estimulando uma mudança significativa no perfil da população brasileira. A urbanização, antes com traços que pareciam irreversíveis, dá sinais de remodelação, fruto de movimentos de retorno de contingentes populacionais para o campo e para os municípios de menor porte.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), somente nos três primeiros anos da década 4 milhões de pessoas somaram-se à categoria de "ocupados" na agricultura, a metade "não-remunerados", número que se reforça com a concomitante diminuição dos "assalariados rurais". Isso significa que também o campo tem os seus milhões de ambulantes e perambulantes.
Mas esses caminhantes, das calçadas ou das beiras de estradas, das esquinas e das encruzilhadas, já não são os mesmos de tempos idos. Ao conhecer novas realidades, despertaram consciências. As lágrimas pela solidariedade se transformaram na luta pelo direito.
O Pnud, no mesmo relatório, ao avaliar a questão da repartição da terra na América Latina, concluiu: "A modificação nas relações de força passa pelo surgimento de contrapesos, até mesmo uma revolução". Prognóstico?

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