São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 1997
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A exclusão social

LÚCIO KOWARICK
"BEM-VINDO A SÃO PAULO".

Essa foi a chamada com que o canal 2 da TV francesa apresentou o filme em que a PM aterrorizava, extorquia, espancava e assassinava na periferia da cidade. O documentário evidencia a tenebrosa profundidade da nossa exclusão social.
A França tem também sua "exclusion sociale", que, aliás, foi parte central do debate político que se desenrolou nas últimas eleições legislativas. Ao falar de problemas estratégicos, a questão sobressai enquanto núcleo das polêmicas que estruturaram as plataformas eleitorais.
Em termos sumários, trata-se de 6 milhões a 7 milhões de pessoas, 10% da população francesa num quadro de vulnerabilidade. Para estes, o Estado desenvolve políticas especiais relativas a infância, moradia, velhice e deficientes físicos, além das crianças carentes, de empregos para jovens, alocações aos desempregados e renda mínima, que totalizam um dispêndio anual de cerca de R$ 20 bilhões.
Impulsionados pelo poder central, descentralizam-se em ações locais por meio das Zonas de Educação Prioritária, Desenvolvimento Social de Quarteirões e outras atividades que procuram integrar programas de saúde, educação, Justiça, segurança, assistência social, esporte, cultura, formação e atualização profissional e que priorizam mil áreas críticas, os chamados "quartiers difficiles".
Na França também há crise do Estado e da proteção social, mas, à esquerda como à direita, seguindo concepções diversas, há um comprometimento com a população marginalizada.
Na França há um esforço para atingir jovens, adultos e idosos, tanto na esfera do trabalho quanto no que diz respeito às condições de moradia e do bairro, por ações conjugadas em torno da consolidação e ampliação dos direitos de cidadania.
Diante dessa modalidade de ação estatal, as políticas públicas brasileiras, na maior parte dos casos com atuação burocrática e fragmentada, revelam uma concepção de intervenção no mínimo obsoleta, para não dizer reprodutora das desigualdades. Nesse contexto, o esforço da Comunidade Solidária, inovador e honesto, constitui gota d'água num oceano de ineficiência e clientelismo.
Comparada à França, nossa fratura social é de outra natureza quantitativa e qualitativa. Não cabe repetir os dados acerca da desigualdade social e econômica, pois todos os conhecemos.
Contudo, para sintetizar a dramaticidade da situação, vale dizer que o número de moradores em favelas em São Paulo cresceu nos últimos dez anos de 1 milhão para 2 milhões de pessoas. Dramaticidade que assume sua real significação quando se sabe que essa leva humana, semelhante a um deslocamento em situação de guerra, em boa medida não é de recém-chegados à cidade. Trata-se, ao contrário, de habitantes que já moravam na metrópole e que não tiveram outra alternativa senão ir viver em um barraco.
Em termos simples: o avanço dos anos 90 não tem levado à consolidação dos direitos sociais. Ao contrário, tudo indica que a situação de trabalho e remuneração, habitação, transporte e saúde pública, para não falar no ridículo das aposentadorias e pensões, deteriora-se ainda mais, pelo menos nos maiores centros industriais brasileiros.
Ainda mais: não há consolidação dos direitos civis, na sua concretude mais elementar, que é a integridade física das pessoas. Entre 1984 e 1991, mais de 4.000 transeuntes foram mortos pela Polícia Militar em São Paulo. Isso para não falar de intimidações, extorsões, espancamentos ou torturas, que em boa medida não entram nas estatísticas oficiais, pois o medo passou a fazer parte do cotidiano de nossas cidades.
Há também os furtos, assaltos, sequestros, estupros e assassinatos praticados por jovens e adultos, cuja dimensão constitui fenômeno inédito na história da delinquência no Brasil.
Mas nada disso justifica a truculência da ação policial, cujo paradigma recente é o assassinato dos presos no Carandiru ou o massacre dos sem-terra no Pará: o primeiro feito com o conhecimento das autoridades públicas estaduais, e o segundo evidenciando a relutância do Executivo federal em enfrentar a criminalidade policial.
Nesse quadro de ruptura com os direitos básicos de cidadania é também sintomático que jovens abastados, após queimarem um índio em plena rua de Brasília, justifiquem-se ao dizer que pensavam tratar-se de um mendigo. Sintomático porque condensa a forma como os dominantes encaram os pobres, objetos de uma violência rotineira e banal que os desqualifica enquanto cidadãos: uma outra humanidade, que deve permanecer na situação de excluídos, pois assim foram desde sempre.
Se quisermos caminhar para uma sociedade menos violenta, é crucial uma atuação governamental que se abra para os movimentos sociais, entre os quais o dos sem-terra, que apresenta hoje maior vigor reivindicativo em termos de mudanças essenciais. Por outro lado, que enfrente de fato a questão da reforma do Estado -inclusive, mas não apenas, a do Poder Judiciário.
Claro que isso se choca com arraigados e retrógrados interesses estabelecidos, inclusive, mas não apenas, com a aliança que dá sustentação ao governo federal. Para tanto, é necessário não só vontade como coragem política. Com a palavra os mandatários do país, inclusive, mas não apenas, o presidente Fernando Henrique Cardoso.

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