São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Prostitutas muito maiores de idade

DEBORAH GIANNINI; MARCOS DÁVILA; AURELIANO BIANCARELLI; LAURA MATTOS

Mulheres começam na "mais antiga das profissões" após os 30 anos, em busca de dinheiro ou para fugir da solidão
"Só depois dos 40, a mulher vira mulher de verdade"
Rosa, 45
"Eu não nasci para isso, nasci para ser dona-de-casa, companheira"
Simone, 42
"Hoje todo mundo procura coroa. As meninas estão transando com raiva, é profissional. Nós tratamos com mais carinho".
Márcia, 45
"Digo ao meu filho que parei. Ele ficava triste, com motivo. Mas ainda não está dando para parar"
Ângela, 50
"Dinheiro maldito é aquele que você não ganha"
Rosa, 45
"A maioria que vem aqui é casado, tem mulher boa. Depois de estar nessa vida, você não confia mais em homem".
Juliana, 54
"Tive que aprender a andar de cabeça erguida e a me sentir um ser humano"
Madalena, 45
"Quando meus filhos e meus netos aparecem aqui, desligo o telefone. Aos domingos, viro avó"
Leslie, 50
"Um coroa quer morar comigo e eu vou. É melhor do que ficar sofrendo, passando fome e frio"
Xuxa, 45
POR DEBORAH GIANNINI, MARCOS DÁVILA E AURELIANO BIANCARELLI
Colaborou Laura Mattos
O telefone toca pela décima vez num apartamento no centro da cidade. Uma mulher tira o fone do gancho e repete automaticamente, com a voz cansada, a mesma ladainha das ligações anteriores: "Sou loira, tenho 45 anos, bumbum grande, cintura fina, coxas grossas, seios médios e firmes", respondendo às expectativas de mais um cliente que leu seu anúncio no jornal ("Coroa Márcia - bem liberal"). O preço do programa: R$ 50.
Depois de uma hora, ele toca a campainha. A porta é aberta por uma mulher baixinha com os seios de fora, unhas compridas vermelhas, calcinha preta e um robe transparente. O cliente é levado ao quarto sem demora e convidado a se sentar na cama. Mais um homem passa rapidamente pela vida de Márcia, que começou a trabalhar como prostituta, em 1986, com 34 anos.
Márcia faz parte de uma parcela numerosa -mas ainda não-quantificada- de prostitutas brasileiras que é praticamente desconhecida do grande público e um "mistério" até para antropólogos e assistentes sociais. São as "coroas liberais", como elas se chamam, ou prostitutas de mais de 40 anos.
Enquanto as "meninas de rua" -garotas de 11, 12 anos- são constantemente alvo de reportagens, de denúncias de entidades de direitos humanos ou de programas assistenciais do governo, as "prostitutas muito maiores de idade" permanecem esquecidas.
Embora sejam minoria, não são numericamente insignificantes. Em anúncios classificados do tipo "relax", cerca de 5% são de coroas, "ativas", "fogosas", "alto nível", "sem frescuras". Nas ruas, é mais difícil inferir estatísticas, mas, em São Paulo, elas se concentram no bairros da Luz, Brás e Santo Amaro.
Nos EUA, existem até revistas especializadas como a Over 40 (algo como Acima dos 40) e a Over 50. Ambas, recheadas de fotos de modelos entre 40 e 70 anos em poses pra lá de pornográficas, são vendidas em bancas de jornais de São Paulo (leia texto na pág. 14).
Dinheiro com afeto
A maioria dessas "coroas" começou na prostituição depois dos 30 anos, após um casamento malsucedido, tem filhos, esconde seu verdadeiro ofício da família e pode ser confundida com uma dona-de-casa que está indo ao supermercado. Nada de maquiagens carregadas, lingeries vermelhas, botas brancas ou meias arrastão. Pelo menos quando estão nas ruas.
Segundo Leandro Feitosa, psicólogo da Associação Piracema, uma ONG que dá assistência aos profissionais do sexo, as "coroas" disputam a calçada com mulheres mais novas. "A grande maioria das prostitutas mais velhas começou em torno dos 30, 40 anos. O principal motivo é econômico, mas algumas ficam na rua para ter algum tipo de relacionamento social, para fugir da solidão. Elas cobram em geral o mesmo que as jovens", diz.
Longe de ser apenas mais uma fantasia, o sexo com as mulheres mais velhas atendem um público fiel que procura, além de relações sexuais, companhia e carinho.
"Além disso, as mulheres mais velhas não são viciadas em drogas. Todas as novas estão no crack, sem exceção", afirma Claudia Benatti, coordenadora da Casa de Convivência da Mulher-Luz, que dá apoio às prostitutas do Jardim da Luz.
"Muitas vezes, os homens me procuram só para conversar", diz Suelen, 45, que deixou, há dois anos, uma fábrica de calçados no Sul, onde trabalhava havia 25 anos, para administrar uma "casa de moças" em São Paulo, e ganhar quatro vezes mais.
Depois de três meses trabalhando na casa, começou a fazer programas também. Ela já acompanhou clientes em festas, coquetéis, jantares e até em viagens de fim-de-semana.
Atarracada e sorridente, a mineira Silvia, aparenta ter alguns anos a mais que seus 39 e já está na rua há 22 anos. "As meninas (prostitutas mais novas) são papo furado, porque pensam só no dinheiro. A gente não, é com dinheiro e afeto."
Marcia faz coro com Suelen e Silvia: "Hoje todo mundo procura coroa. Até os mais velhos, que costumam gostar de menininhas. As meninas estão transando com muita raiva, é mais profissional. As coroas tratam com mais carinho".
A prostituta carioca Ângela Maria da Cunha Silva, 50, conhecida como "Vera Fischer", é outra que tem clientes fixos, que a procuram por ser "meiga e carinhosa, diferentemente das novatas".
"Tenho um mesmo cliente há 15 anos, e um outro que, mesmo depois de casado, continua usando os meus serviços", afirma "Vera Fischer", que justifica seu apelido por ser "branca, sardenta, ter usado cabelo loiro até o ombro e estar sempre de saia curta".
Recentemente, Ângela encontrou-se com a sua musa, a atriz Vera Fischer, durante as filmagens de "Navalha na Carne". Ela orientou a atriz sobre como interpretar uma prostituta. "Nos ensaios, quando a vi apanhando do cafetão não acreditei. Isso nunca aconteceu comigo. Nunca tive cafetão. Sempre trabalhei para os meus filhos", diz.
Ângela não começou "nessa vida garotinha". Já tinha 30 anos, quando foi "para a calçada", depois de se separar do marido e não conseguir um emprego. "Para se dar bem na rua, é preciso ser amiga de todo mundo, ser cega, muda e surda", diz.
Garotos são chatos
Embora os "garotões" procurem as veteranas em busca de experiência, elas preferem os fregueses maduros. Vicky, 40, que trabalha numa boate na rua Augusta, diz que não gosta de atender novatos. "Eles sempre chegam sem dinheiro e falam demais."
Leslie, 50, que tem um casal de filhos e seis netos, chega a recusar jovens. "Quando me ligam, eu já falo a idade. Se a voz é de garotinho, prefiro deixar para lá. Eles são chatos, não dá para confiar."
A ex-ascensorista Bel, 41, começou a fazer programas na rua há três meses e prefere idosos e negros. Ela diz que um garoto de 18 anos chegou a se apaixonar por ela. "Mas eu não gostava dele. Ele foi embora para o Norte e me deixou uma carta dizendo que um dia vai voltar."
Há 25 anos na Luz, Juliana, 54, tem cinco filhos e quando é assediada por jovens, brinca: "Não é rei, mas gosta de uma coroa". Ela conta que os mais novos "ficam no pé". "Um menino queria morar comigo, mas eu prefiro ser independente".
Sua pele clara é marcada por rugas acentuadas. Vestindo calça e uma malha de lã, Juliana parece uma "vovó". O sorriso vem fácil, apesar de a todo momento ela dizer que é uma pessoa "muito sofrida".
Depois de sete anos de casamento, Juliana flagrou o marido na cama com outro homem. "Sofri muito quando descobri que ele era homossexual", diz.
Trouxe as crianças para São Paulo, mas logo depois elas voltaram para o interior. "Além da violência daqui, tinha dias que só tinha a água da torneira em casa, nada de comida. Quando se está sozinha, a gente se vira, mas, quando há crianças para sustentar, é duro."
Juliana começou a se prostituir em um dia em que estava passeando pela cidade e parou em um ponto de ônibus no Largo da Concórdia. "Um homem começou a conversar comigo e, depois das perguntas habituais, falou: se quiser vamos no hotel e eu te dou dinheiro. Topei pelo dinheiro, nunca gostei de ninguém."
Domingos de vovó
Ninguém sabe que Juliana é prostituta: nem os filhos, nem o ex-marido, nem a família. Para todos, ela trabalha como empregada em "casa de família".
"A vida é minha, já sou vacinada. Não conto porque minha filha tem medo que eu pegue doença. Se ela quisesse ser prostituta, eu não recriminaria, a vida é dela. Mas ela diz que jamais venderia o corpo."
Como Juliana, a maioria das "coroas" entrou na prostituição depois de uma desilusão amorosa -maridos alcoólatras, bissexuais ou violentos- e preferem esconder a profissão dos filhos e da família.
Leslie, 50, é uma prostituta às escondidas. Mantém um telefone para a família e outro para os programas, que custam R$ 80 cada. "Quando meus filhos e meus netos aparecem aqui, desligo o telefone e o escondo no armário. Aos domingos, viro avó e a casa é da família."
A família nem desconfia dessa sua vida. Oficialmente, ela vende lingeries, e é assim que vive. Nas paredes da sala, estão as fotos dos netos e um retrato no qual aparece abraçada com os filhos. Um rosário e uma imagem da Virgem ficam sobre a cama onde recebe os homens.
"Tive uma família feliz. Não tenho por que me separar dela", diz. Leslie foi casada dos 17 aos 20 anos, depois viveu com um companheiro entre os 30 e 43 anos.
É graças aos atributos que a idade lhe deu -acredita- que consegue manter uma clientela fiel e sobreviver em um mercado onde dominam jovens, muitas adolescentes.
"Os homens me querem assim. Muitos têm 50, 60 anos e poderiam estar com menininhas pagando menos", diz.
Taras e romantismo
Alguns clientes procuram Leslie justamente porque esperam de uma "coroa" o que jovenzinhas não poderiam fazer: "brincar de fazer amor com a mãe". "É a fantasia de muitos. Querem brincar de tomar banho com a mãe: 'mãezinha, vem aqui dar banho no filhinho'. Querem brincar de mamar: 'A mamãe dá de mamar para o filhinho?' Me deixam chocada com isso, mas não posso recusar. Fico pensando no meu filho, ele não faria isso. São coisas de homens que não se resolveram com suas mães."
Outra fantasia que os homens levam para a cama de Leslie é a da traição. "Um diz que sua mulher viajou com o chefe e que estaria dormindo com ele. Quer que eu diga que é isso mesmo, que ele é um traído, que a mulher está com outro. Só assim consegue chegar ao orgasmo. Não consigo entender um homem assim."
As "prostitutas de mais de 40" dizem que atendem também as fantasias de quem ainda sonha com as amigas da mãe ou com as professoras do colégio.
Apesar de satisfazer essas taras, Leslie se porta como uma prostituta romântica, uma espécie em extinção. Gosta de dançar tango e prepara a mesa do jantar com luz de velas, como aprendeu com a avó. Evita o que considera termos vulgares. "É isso que diferencia os jovens dos mais velhos. Os jovens ligam e perguntam se faço isso ou aquilo. Querem detalhes. Os mais velhos perguntam se sou carinhosa. Isso basta. Na hora do amor, a gente faz o que for bom e der vontade", defende Leslie, que foi secretária até os 26 anos.
Seu primeiro cliente foi um senhor inglês, "muito educado". "Eu caí no choro, de tão nervosa. Ele ficou me consolando, me pagou e foi embora sem tocar em mim", lembra-se.
Entre suas melhores recordações, Leslie conta que viveu um romance com um tenente que recebia o espadim na academia das Agulhas Negras. "Fui sua madrinha, ele me apresentou para os pais. Nunca me perdoou depois que soube que eu fazia programa", conta.
Muitos clientes envelhecem com ela. Pelo menos dois deles trouxeram os filhos, adolescentes. "Deixavam aqui e passavam mais tarde. Não gosto disso, mas fazia pela amizade com os pais", diz.
Bem menos "sofisticada" que Leslie, Madalena, 45, também sofre de nostalgia. Agora em Campinas, ela trabalhou muitos anos em Santos. "Eu ganhava muito dinheiro naquela época, quando o porto era chique. Transava com muitos comandantes estrangeiros", diz.
Uma vez, conta, colocou um vestido longo e foi se encontrar com um desses comandantes em um navio que estava ancorado no porto. "Quando cheguei, percebi que todos achavam que eu era a sua mulher. O próprio comandante me disse que eu não tinha cara de prostituta. A partir daí, quando descobri que não pareço mulher da vida, nunca mais abaixei a cabeça", diz Madalena.
Casa na praia
Apesar de se orgulharem de serem "carinhosas" e de dizerem que não se envergonham do que fazem, todas as "prostitutas da Terceira Idade" -nesse mercado, acima de 40 anos- pretendem mudar de vida, assim que puderem.
"Se tivesse condições já tinha saído da rua. Não gosto dessa profissão. Aceitava um tempo atrás, mas acho que tudo tem o seu tempo. Estou cansada, mas a necessidade é grande", afirma Ângela.
Seu expediente de trabalho na rua vai começar cedo se "o bolso e o armário da casa estiverem vazios". Além do filho de 25 anos, ela tem três adotivos, sendo que o mais novo tem seis meses. "As colegas de serviço não queriam mais, então levei para minha casa", conta.
De acordo com Elizabete Inglesi, diretora da Genus Internacional, que assessora programas na área social e de saúde às prostitutas, não é o envelhecimento do corpo que irá determinar o fim da carreira na prostituição, mas sim a necessidade financeira.
"Há homens que preferem as velhas. Elas continuam nessa vida por necessidade ou porque já se acostumaram e não saberiam viver outra vida", diz.
Márcia, 52, trabalha na rua em Vitória (ES) e se considera uma "coroa enxuta". Nunca teve outra profissão. "Penso em largar, mas não posso. Já se passaram 34 anos. Quem é que vai me dar um emprego?"
Entre as prostitutas mais velhas, os planos para o futuro são românticos, modestos, mas improváveis.
Rosa, 45, casada e com um filho, há cinco anos na prostituição, planeja abrir um restaurante. Ângela, 50, a "Vera Fischer", gostaria de abrir uma creche. Leslie, 50, quer comprar uma casinha na praia e viver lá. Sonha ainda com uma paixão. "Vai me aparecer um novo amor e eu vou conquistá-lo. Vou poder, então, me dedicar ao que sei fazer de melhor: cuidar de um homem."

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