São Paulo, sábado, 5 de julho de 1997
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Ventos de mudança

RUBENS RICUPERO

"Concordamos em discordar". Essa pequena frase parece resumir o que se lê nos jornais nesses dias sobre o resultado das grandes reuniões econômicas internacionais.
Em Denver, os países do G-7 não discordaram apenas na questão de adotar ou não metas obrigatórias de limitação das emissões de carbono. Eles tampouco conseguiram entender-se na escolha do modelo preferível para a economia, se o americano, capaz de gerar empregos, mas à custa de aumento da desigualdade social, ou o europeu, forte em segurança social, mas que fracassou até agora na luta contra o desemprego.
Em Amsterdã, os europeus divergiram na prioridade a dar ao aumento do gasto público para criar empregos ou, ao contrário, à redução das despesas a fim de diminuir o déficit orçamentário e preparar a moeda única.
Em Genebra, poucas semanas atrás, irrompeu a discórdia em torno da proposta do diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho de criar um "selo social global", para garantir o cumprimento das normas trabalhistas mínimas, da mesma forma que ocorrera, meses antes, na conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio, em Cingapura, a propósito do vínculo entre padrões trabalhistas e comércio.
Finalmente, na semana passada, em Nova York, a sessão especial da Assembléia Geral da ONU terminou com nota dissonante devido ao fracasso em equilibrar a responsabilidade compartilhada pelo meio ambiente com o correspondente acesso a meios financeiros adequados e a tecnologia apropriada.
Estarei sendo demasiado seletivo na escolha de meus exemplos, ignorando outros casos igualmente convincentes em sentido oposto, ou estamos começando a ver os primeiros sinais de tendência a uma crescente divergência na economia mundial?
A resposta a essa pergunta é, ao mesmo tempo, sim e não. Talvez mais do que usualmente, o atual panorama do mundo se caracteriza por luzes e sombras, uma paisagem confusa e contraditória pintada em chiaroscuro.
Existem, por exemplo, indicações de que, em alguns aspectos, a economia mundial demonstra propensão mais a se polarizar que a convergir. Assim:
- o crescimento tem sido em geral lento demais para gerar empregos suficientes com salários adequados ou para reduzir substancialmente a pobreza;
- acentuou-se a tendência à divergência no interior do grupo dos países industrializados (EUA, de um lado, Europa e Japão, do outro), entre os desenvolvidos e a maioria das nações em desenvolvimento e, no seio desta última categoria, entre os asiáticos de crescimento rápido e os demais;
- a desigualdade de salários entre trabalhadores qualificados e sem qualificações é um fenômeno universal;
- o esmigalhamento da classe média tornou-se característica da distribuição da renda em numerosos países;
- a crescente insegurança de emprego e renda passou a ser feição generalizada da economia global.
Alguns desses aspectos podem ser apenas deslocamentos temporários. Outros serão talvez mais permanentes. Entretanto, se essas tendências ao aumento da desigualdade entre países e no interior das sociedades não forem detidas em tempo, poderão desencadear uma reação capaz de pôr em risco muitos dos elementos positivos das reformas econômicas recentes.
A fim de merecer o nome, a globalização tem de incluir, não excluir, integrar, não marginalizar. Caso a evolução dos últimos anos acabe por provocar desintegração social e por empurrar nações e continentes à periferia da história, a globalização teria traído sua promessa e seu próprio nome.
Terminaria por soar como uma cruel brincadeira, do mesmo modo que em "1984", de George Orwell, onde o preto é chamado de branco e a tirania é rebatizada de democracia.
O século que termina assistiu, no interior das nações e entre elas, a conflitos de uma violência e crueldade sem precedentes. Muito dessa destruição e sofrimento teve como raiz a incessante busca humana por mais igualdade, trabalho e uma vida melhor. Apesar de tudo, nenhuma proposta de organização da produção foi até hoje capaz de atender a essas expectativas. O século acaba melancolicamente com seus dois grandes problemas, o desemprego e a desigualdade, sem solução à vista e ainda em aumento.
Não haverá paz ou repouso enquanto a situação permanecer assim. Após uma dose mais que razoável do que Schumpeter chamou de "destruição criativa", é mais do que tempo para os líderes mundiais tentarem reconciliar as forças criativas do mercado com as necessidades dos desfavorecidos. Em outras palavras, é hora de aplicar um pouco de "construção criativa".

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