São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Que tal um fundo pago por quem desemprega?

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Leio no jornal que, dentro de um ano, no máximo, vão desaparecer os cobradores de ônibus em São Paulo. São hoje 22 mil. Serão substituídos por um sistema de catracas eletrônicas.
O sistema é uma beleza: o usuário terá um cartão magnético com o número de viagens a que ele tem direito. E não precisará nem mesmo tirar o cartão do bolso quando passar pela catraca. A máquina lê à distância.
Isso representará, segundo a prefeitura, uma redução de 20% nos custos do transporte. O sistema vai custar cerca de R$ 55 milhões.
Chamo a atenção para o caso porque exemplifica o que entendemos por progresso, modernidade, tecnologia. Em todos os lugares e países, a mão-de-obra tende a ser substituída com vantagens pela máquina. Com uma mísera catraca, 22 mil pessoas perderão seu emprego.
Serão reaproveitados em outras funções, diz a prefeitura. Mecânico, funileiro, bilheteiro, motorista. O que significa apenas o seguinte: os 22 mil empregos perdidos não serão necessariamente de cobrador, mas vão se distribuir entre outras categorias, a dos aspirantes a funileiro, a dos mecânicos virtuais, a dos motoristas sem talento. Em todo caso, serão 22 mil postos de trabalho a menos.
Ficamos na seguinte situação. Os cartões magnéticos facilitam a vida do usuário e resultam em economia para as empresas, que poderão investir em ônibus melhores, estofamentos mais macios etc. Na vida de cada consumidor, podemos prever uma melhoria global de 0,1%, 0,2%: mais rapidez e conforto. Na vida do cobrador de ônibus, é provável que tudo piore em 60%, 70%.
O sindicato dos cobradores é contra esse progresso. Reclama de uma coisa que vai melhorar a vida de todos (mas só um pouquinho) em favor de uma situação que não melhora a vida de ninguém, mas estraga (muito) a vida de uma minoria, seus 22 mil associados. Vemos aí a raiz de uma lógica especial: a de acusar os sindicatos de corporativismo. "Por que os sindicatos não pensam mais no bem comum?"
Esqueci-me de pensar em outras consequências. Há as firmas que fabricam cartões magnéticos para catracas. Vão empregar gente, sem dúvida. Uma concorrência fraudada nessa área levará ao enriquecimento de dois ou três altos funcionários da prefeitura. Fora o que gastarão em Miami, o ganho obtido exigirá, quem sabe, a contratação de alguém para cuidar da limpeza da piscina, de modo que é sensacionalismo barato falar em 22 mil desempregados.
Por outro lado, a velocidade de deslocamento dos ônibus, o bem-estar do usuário, o trânsito, tudo vai melhorar. As energias que o cidadão gasta para procurar moedinhas no bolso serão poupadas, de modo que talvez notemos mais disposição, mais presteza, mais cronometragem, no garçom que nos serve o "coq au vin".
Brincadeiras à parte, noto algumas coisas. Obviamente, estamos assistindo ao fim de um tipo de trabalho, o do cobrador de ônibus, o do operário de fábrica, o do balconista de loja, o do caixa de banco. Todos podem ser substituídos por maquinetas.
Teoricamente, e praticamente, é um progresso. A mão-de-obra humana vai se tornando dispensável. Trata-se de um acontecimento que em tese é liberador para a humanidade. Não vou ficar aqui defendendo a manutenção "do emprego", do "trabalho", como bens em si mesmos, como valores irrecusáveis.
A profissão de cobrador de ônibus não tem nada por que ser defendida. É imoral e desumano pensar que uma pessoa deva passar horas e horas girando uma catraca e conferindo o troco. A extinção dos cobradores em São Paulo deveria ser saudada como um progresso.
Por que não é? Porque esses milhares de cobradores não terão mais nada a fazer da vida. Ao fim glorioso do trabalho alienado, a sociedade moderna não tem nada a responder exceto um perverso "vocês que se danem".
A esquerda reage com uma defesa do trabalho brutalizador. É como se isso desse beleza e dignidade ao operário, ao lavrador. Vide as fotos de Sebastião Salgado. Mas será que não seria possível uma alternativa menos heróica, menos vitimante, menos trágica?
O problema atual, a meu ver, é menos o do "emprego" que o da "ocupação". Dei uma olhada no livro de Viviane Forrester, "O Horror Econômico" (editora da Unesp). Ela acerta num ponto: diz que há uma grande farsa no discurso dos políticos que prometem emprego para todos. Ela sabe que a era do emprego terminou. Pena que diga isso num blablablá pseudoliterário, emocional, meio capenga, que me dispensa de ler o livro inteiro e me leva a concordar com Roberto Campos, no seu artigo de domingo passado na Folha, contra o sentimentalismo da autora.
Mas a era do emprego terminou. Os 22 mil cobradores estão condenados, eles e muito mais gente. Penso numa alternativa. Todo o ganho social que obtemos, em termos de velocidade e desumanização, em termos de assepsia e ordem, de velocidade e método, deveria ser taxado.
Vivemos uma situação paradoxal: a empresa que emprega muita gente é taxada intensamente. A empresa que desemprega tem muito pouco a pagar. E se fosse o contrário? Não sou economista, mas imagino, para os desempregados da nova era, não novos empregos, mas novas ocupações. Menos alienadas, menos cretinas do que o emprego que tinham antes. Que tal um fundo a ser pago por quem desemprega, visando o aprimoramento de quem foi mandado para o olho da rua?
Música, escultura, livros: será que esses cobradores desempregados não têm nada a dizer quanto a isso? Quantos talentos, quantas pessoas, não estão atrás de cada catraca sonolenta? Será que tirá-los da catraca é sinônimo de anulá-los enquanto pessoas? Quem sabe o que essas 22 mil pessoas são capazes de fazer? Cada pessoa, cada um dos cobradores, na minha convicção, é um universo, é um bem precioso. Estamos desperdiçando gente, não recursos. Não haverá progresso se não aproveitarmos cada pessoa vivente, suas potencialidades, como terra fértil. Quem sabe? Melhor do que jogá-las fora como casca de banana.
Correção
Num artigo sobre Roberto Schwarz, no Mais! de 22 de junho, escrevi errado o nome do crítico literário José Antonio Pasta Jr. Chamei-o de José Paulo Pasta Jr. Erro feio, porque sempre admirei muito o José Pasta Jr., e não tinha o direito de confundir seu nome.
Erros desse tipo, ao menos, podem ser corrigidos. Outros, mais sutis e involuntários, não têm remissão. Denunciados de forma sibilina, misteriosa, podem ser intuídos pelo autor, mas este não tem sequer como desculpar-se, o que é uma pena. Termino assim, em enigma e penitência, dedicados aos que sabem decifrar.

Texto Anterior: Banda tem passado ruim
Próximo Texto: Mostra em Queluz relembra revolução
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.