São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 1997
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Artistas de circo: de repentistas a concretistas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fui ver domingo passado, no Memorial da América Latina, a finalíssima do "Primeiro Campeonato Brasileiro de Poetas Repentistas", evento patrocinado pela União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes), pelo Centro Popular de Cultura (CPC) e pela União dos Cantadores, Repentistas e Apologistas do Nordeste (Ucran).
"Xii... " pensa o leitor bem-informado, "eis aí uma história conhecida". O intelectual branquelo, afrancesado e elitista "descobre" a arte popular. Teremos agora um espetáculo de remorso, de bater-no-peito, de culpa e populismo.
Em parte, isso é verdade. Fiquei maravilhado com a arte dos repentistas. Foi uma verdadeira aula de formas, de ritmos, de métrica, de rimas.
Começo explicando os segredos, as artes e artimanhas do repente nordestino. Assumo o ridículo da "descoberta", para depois questionar.
Como todo mundo sabe, o repentista deve improvisar alguns versos ao som da viola, e seu desafiante está encarregado de responder ao que ele disse. É isso o que sabemos do assunto.
Mas fiquei sabendo outras coisas. Há regras, modos, formas muito estritas a seguir.
A mais simples se chama "mote de sete": são seis versos, de sete sílabas, onde o segundo, quarto e sexto devem rimar entre si, e que devem terminar no mote proposto. Por exemplo: "você é como coceira, dá em tudo que é lugar". Este é o mote que termina a improvisação, cabendo aos repentistas imaginarem rimas em "ar" e "eira", e que insultem o adversário.
Entre Sebastião da Silva e João Ferreira, o mote ocasionou lances de agressividade verbal memoráveis, que podem ser conferidos em vídeo se você ligar para o tel. 011/831-1384, SVC Vídeo Produções, que gravou as semifinais do campeonato.
Mas o "mote de sete" é brincadeira de criança perto das outras modalidades do repente. Há o mote em decassílabos, por exemplo, sorteado na hora: "O Brasil chorou muito ao perder Senna/E hoje ri por ter Guga e Ronaldinho". Ingênuo e fácil, certamente, mas tente fazer na hora uma estrofe com rimas em "ena" e "inho". Depende de uma prática e de uma agilidade mental espantosas. A prova está nos que não conseguem, que engasgam e se atrapalham no durante o repente.
Mas o formalismo da coisa toda está apenas começando. Há outras modalidades: o "martelo agalopado", dez versos de dez sílabas, onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono.
O "martelo alagoano" é igual, mas tem uma melodia mais gostosa, e seu verso final é obrigatoriamente: "nos dez pés do martelo alagoano".
Há também o "martelo miudinho", o "gabinete", o "dez de queixo caído", a "meia quadra", o "mourão voltado", o "quadrão mineiro", o "galope à beira-mar"...
Cada repentista tem de seguir as regras estritas de cada modalidade, sob pena de perder pontos no campeonato. É tudo complicadíssimo.
Claro que o intelectual branquelo, galeguinho, de venta fina e bom-de-bico, se espanta com tamanha sofisticação. Com a própria ignorância também. E com o próprio preconceito.
Os Ismaéis, os Sebastiões, os Valdires que arrepiam nesses versos parecem, objetivamente, zeladores de prédio, chapeiros de lanchonete, motoristas de táxi. Têm a cara do nortista mais normal do mundo.
E o intelectual branquelo passa a respeitar mais o chapeiro, o zelador, o motorista que lida tão bem com as palavras, que tem a resposta ligeira e o verso afiado, o estro finório, pronto e brejeiro, a rima feita e a verve vibrante no martelo agalopado.
Isto é o que eu tinha a dizer no capítulo, em última análise banal, do sujeito que descobre as sutilezas da arte popular. Passo a outro capítulo, talvez mais interessante.
O evento foi patrocinado pela Umes, pelo CPC e pela Ucran. É forte o predomínio do PC do B em tudo isso. O que significa o PC do B em termos de cultura? O velho nacionalismo, a velhíssima defesa da cultura popular brasileira contra a invasão do imperialismo americano.
Na barraquinha vendendo folhetos de cordel, no saguão do Memorial, também podíamos encontrar panfletos do velho marxista Plekhanov, atacando a arte moderna do começo do século, identificando o cubismo com a decadência burguesa.
O reacionarismo estético estava, claro, presente nessa reunião de repentistas.
Vemos as idéias tradicionalistas de Ariano Suassuna recobrarem vigor e serem divulgadas na mídia do Sudeste.
O campeonato dos repentistas ganhou espaço no Guia da Folha. O que significa isso?
Muito mais do que um ato de resistência política, vejo no evento um sintoma da globalização. As duas coisas se confundem. Quanto mais tudo se iguala ao ritmo do tecno, do rock, de Madonna e Michael Jackson, mais surge a necessidade de um insumo "étnico", "tribal", à plastificação da cultura.
O exótico, o popular e o "inabsorvível" se tornam ingredientes da salada mundial. Cantigas muçulmanas e modos mixolídios, ragas indianas e batidas hotentotes têm de ser industrializadas para animar a festa. Globalização, em cultura, não é indiferenciação, mas variedade sintonizada com o mercado.
Ou seja, a ideologia stalinista da arte dirigida, nacional, engajada etc., que orientou os CPCs e ainda orienta o PC do B e Ariano Suassuna, erra ao se considerar como fator de resistência revolucionária; é o atraso puro e simples, ou o "ecológico". Mas esse atraso ganha atualidade com a globalização.
Mais do que isso, esse campeonato atende a um gosto muito pós-moderno e formalizante. O virtuosismo no decassílabo e na rima rica tem sido cultuado, entre nós, pelos poetas que se originam do pólo oposto ao populismo do CPC. Refiro-me à escola de tradutores que foi influenciada pelos concretistas.
Populismo e concretismo, tradutores de Hopkins e cantadores nordestinos, militam assim num mesmo plano. O da poesia pura e simples? Talvez. O do formalismo? Talvez. O da internacionalização? Talvez. O do nacionalismo? Talvez. Não sei; sei que há uma incompreensão básica, perversa, a respeito do que significa o Brasil.
Não é uma essência a ser reencontrada ecologicamente em tempos de globalização, nem o quinau técnico dado quando vemos um samba despertar o robô que passeia em Marte. Não é o ato de misturar raças para fazer um reggae nordestino, nem a proeza de encontrar em nós mesmos o fruto de uma mestiçagem pura, inconfundível. Todas essas respostas são ideológicas; dizer que não há resposta é ideológico também, pois negar qualquer resposta atende ao padrão globalizador.
A resposta só virá se esses repentistas com cara de zeladores de prédio, chapeiros de lanchonete, motoristas de táxi, deixarem de se considerar prodígios a serem descobertos pela imprensa, a serem paparicados pelo PC do B; tudo depende de uma situação em que não sejam mais objetos de louvor, e sim sujeitos de uma cultura, que manejam otimamente, mas que não elevam a uma condição trágica, enfática, pessoal, gritante, universal.
Enquanto isso não ocorrer, serão motivo de artigos embasbacados de jornalistas brancos e de manipulações de neo-stalinistas.
Nada pior do que ver esses poetas do repente como artistas de circo; mas eles são artistas de circo e os mais sofisticados tradutores de poesia inglesa também, enquanto não sabemos tudo o de que somos -como qualquer outro povo- capazes.

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